Especial

Foto:

Livro | A Punhalada 4 - Capítulo 13: Nêmesis [Series Finale]


Era como se estivesse caindo devagar.
Do momento em que as palavras foram ditas ao arrancar das mordaças de seus pais, passou-se um instante e horas afundo.
— Últimas palavras? — Dylan perguntou-lhes.
— Matty, não ouça o que ele diz — Disse sua mãe, numa baforada suplicante. — Amanda vai ajuda-lo, não importa o que aconteça com a gente.
Seu castigo imediato fora uma pancada na cabeça com as costas da mão do assassino.
— Não a machuque! — Matty esbravejou.
— Não alimente falsas esperanças — Dylan disse a ela. — Nenhum de vocês sairá vivo daqui.
— Se você machuca-la...
— O que você vai fazer? Gritar até que eu me sinta culpado? Acho que você não está prestando atenção, Matty. Eles já estão mortos... — Posicionou-se atrás deles. — A faca, Elena. Por favor.
Matty acompanhou a trajetória da assassina com os olhos. Gritava e esperneava, não tão como seus pais aguardavam por seu julgamento. Seus olhos lacrimosos eram de um conformismo inaceitável.
— Feche os olhos, querido — Seu pai lhe pediu.
— Dylan, por favor! — Amanda tentava pela última vez.
Mas tudo em vão.
— Isto é por você, Matty — O assassino posicionou a faca. — Pela mãe que merecíamos — E lhes cortou a garganta em dois movimentos rubros. Primeiro a mãe, depois o pai.
Seus rostos desabaram estrondosamente sobre os pratos de porcelana em cima da mesa. Havia gritos, sangue e dor. Matty sentia que iria durar para sempre.
— Eu vou matar você — As palavras de Amanda eram mais cortantes que a lâmina do assassino.
— Você pode tentar — Virou para Matty. — E por que você está chorando? Eles eram pais terríveis. Meu pai de mentira era um pai melhor para você do que eles jamais foram. Deveria me agradecer por tira-los da sua vida.
Matty abaixou a cabeça. Por um momento, não teve qualquer reação. O choro cessou, aos poucos, e finalmente havia parado de tremer. Amanda assistia tudo do seu lugar privilegiado
— Não... — O garoto lhe disse. Erguendo a cabeça, lançou ao assassino de seus pais um olhar fulminante. — Você deveria me agradecer por dar sentido a sua vida. Sem mim, você seria apenas mais um pobre coitado em busca de um propósito. Tudo o que você tem agora foi conquistado por Carter, não por você. Você só teve a sorte de estar vivo quando ele não podia.
— Você é mesmo filho da sua mãe, não é?
— E você é o filhinho do papai — Notou os punhos de Dylan enrijecerem. — Talvez tenha gostado demais da maneira como Carter o tocava quando era criança.
E assim, de súbito, levou um soco no rosto. Totalmente pretendido, àquela altura; mas inevitavelmente doloroso. Matty cuspiu uma bola de sangue aos pés da mesa.
— Continue falando — Era o último aviso de Dylan.
Matty, conquanto sangrasse, ainda não estava convencido.
— Pensei que tivesse um plano.
— Ele inclui matar você, de uma forma ou de outra.
— Matty, pare — Amanda pediu.
Matty não sabia o que aquele olhar significava. Estava assustada? Preocupada? Ou tinha um plano? Movia os olhos de forma irregular, ao mesmo tempo em que levantava uma sobrancelha.
— É isso o que uma mãe deveria fazer — Dylan provocou. — Defender sua cria, lutar com os lobos. Não imaginam o que pode acontecer com alguém que é privado disso. Enfim, vamos continuar com o show, não é, Amanda? — Fez sinal para Elena se posicionar atrás da cadeira. Com uma mão ela segurava a faca, e com a outra acariciava os cabelos de Amanda. — Sabemos que você é uma mulher muito vaidosa e que sempre usou isso a seu favor. Só estava aqui me perguntando, será que o mundo ainda seria obcecado por Amanda Rush se não houvesse mais o que admirar?
Matty sabia o que estava para acontecer.
— Dylan, não — Pôs-se a implorar, em vão, Elena já havia cortado a primeira mexa.
— É apenas um upgrade, você verá.


      Elena partiu para a próxima mexa. Depois a outra, depois a outra, depois a outra. Amanda assistia a queda de seus cabelos em silêncio, com lágrimas nos olhos. Um minuto depois havia tanto cabelo sobre suas coxas que teve certeza de já não ser mais ela mesma. A brecha no centro do crânio deixava o couro cabeludo a mostra, além das pequenas protuberâncias irregulares na lateral.
— Está tudo bem, é apenas cabelo... — Matty tentava conforta-la. — Vai crescer.
Apenas se escapasse.
— Você não gostou? — Dylan se aproximou alguns centímetros do rosto dela. — Ainda é mais bonita que muitos homens. Vamos ver como fica cortando esse rostinho...
Em vez do choro impulsivo, com o qual ele contava para massagear seu ego, Amanda só fez cuspir em seus olhos. O gosto era amargo para todos os que assistiam, menos para ela.
— Vai se foder — Disparou, trêmula ainda. Podia ver em sua expressão, enquanto enxugava o rosto, que tinha acordado uma fera. O primeiro vislumbre do ódio em seus olhos negros para nunca mais esquecer.
Acima de sua cabeça, entre o espaço de uma porta que não mais existia, o sinalizador vermelho começou a apitar. Dylan olhou para cima.
— Oh, oh... Alguém está invadindo o perímetro da propriedade. Seria o casal Estwood? — Olhou para Amanda, depois para a comparsa. — Logo saberemos. Elena, poderia nos fazer este favor? — Fez um sinal com a cabeça para que pegasse a arma em cima da mesa. — Certifique-se de que caiam em todas as nossas armadilhas. Estou no clima para um pouco de caos e catástrofe.
Elena engatilhou a arma para que Amanda e Matty vissem. Saiu pela porta da frente, depois do corredor principal.
— Não importa — Amanda balançava a cabeça em negação. — Se eles estão aqui, a polícia está com eles. Ou no mínimo, a caminho desta cabana.
— E como isso atrapalharia meus planos? Não deixei que você ficasse com seu rastreador na bota direita à toa — Tinha certeza, Amanda fora pega de surpresa. — Sim, eu sabia. Deixei que viessem até aqui apenas para morrer.
Não se Amanda impedisse.
Seu polegar esquerdo estalou quebradiço. Livre das algemas, ela segurou com as duas mãos na ponta da mesa e ergueu-a na vertical, para cima dos dois assassinos. Matty caiu de costas no chão, ainda algemado. Amanda apenas correu.
Por entre a madeira suspensa, um pente inteiro foi descarregado para impedir sua fuga. As balas acertaram vasos, quadros na parede e os móveis da sala de jantar; não ela. Nunca ela, Dylan temia.
 Os assassinos, então, foram a se dividir. Dylan seguiu Amanda pela porta dos fundos, e Ruby voltou sua atenção a Matty, com o fim de interceptar qualquer oportunidade. Sua cadeira havia quebrado na queda, o que lhe deixou sem as limitações da madeira, mesmo que ainda estivesse algemado. Bastou passar as mãos juntas por baixo das pernas para tê-las novamente em frente ao corpo.
Tudo aconteceu rápido demais entre a fuga de Amanda e o ataque de Ruby. Viu a assassina partir para cima dele, quando mal havia conseguido de volta parte dos movimentos das mãos. Chutou-a no peito antes que o esfaqueasse, e levantou na mesma pisada, enquanto ela derrapava por cima do armário de vidro. Tentava chegar a estante da outra ponta quando fora alcançado outra vez. Ela bateu as costas dele contra a parede e acertou dois socos. Matty revidou com uma cabeçada, para afasta-la. Depois pegou o vaso decorativo no armário e atirou contra o rosto dela.
Ruby estava ficando irritada. Muito, muito irritada.
Puxou-o pelo pé direito antes que ele corresse, derrubando-o também. Ele chutou o rosto dela duas vezes; só assim se viu livre a fugir pela porta dos fundos, atrás de Amanda.
Dylan a perseguiu por toda propriedade, atirando sempre que vislumbrava seus vultos. Chegou um momento em que as balas acabaram – tanto do pente carregado quanto do provisório – e ele precisou usar o método tradicional. Uma faca de açougueiro, presa na cintura desde a fazenda dos Fitzgerald.
Quando chegou ao escritório, Amanda o surpreendeu pelo outro corredor com um empurrão. Ele mirou no pescoço, ela desviou estrategicamente, por baixo do braço exposto à altura do ataque. Encontrou refúgio na sala mais próxima, onde Carter Van Der Hills costumava planejar seus crimes. Há dez anos, Amanda encontraria fotos suas e de seus amigos por todos os lados. Agora, nada além de uma decoração cordial.
Não tinha dúvidas de que o assassino conhecia cada cômodo como se fosse sua própria casa.
Ela desviou de uma estocada, de outra e mais uma; o esquema era o mesmo. Na quarta, a faca do assassino cravou acidentalmente na madeira da estante, dando a ela uma oportunidade de revidar com uma cotovelada. Foi para cima dele a toda velocidade, até que encontrassem o limite da outra estante de vidro – o impacto absorvido por inteiro pelas costas do outro. Acertou-lhe mais um soco no maxilar. Ele, dois em seguidas, direto na região ocular. No último ela ficou zonza, e ele chutou-a na cintura para que caísse de uma vez.
— Quer saber do que eu sou feito? — Chutou-a no estômago, de baixo para cima. — Me dê um beijo.
Ela só fez tirar uma das botas e acertar a ponta do salto em sua têmpora esquerda.
— A tia Amanda tem outro presente pra você — Chutou-o nos testículos, como um golpe de misericórdia. Ele caiu no chão, ela correu para o lado de fora.
O barulho dos disparos a desorientava. Não sabia de onde vinham, nem qual parte da escuridão lhe era segura.
Tendo em vista o penhasco, Aaron não estava tão longe do ponto central da propriedade. Com ele trouxe Megan e uma equipe policial especializada em resgate e terrorismo doméstico – ao todo, vinte e dois homens desavisados que correram direto para as armadilhas. Alguns foram mortos com flechadas; outros – os mais sortudos – ficaram suspensos em redes a dez metros de altura. Alguns feridos aqui e ali, entre ele, Elena e as árvores que os encobriam.
— Avançar! — Aaron ordenou.
Os policiais que restavam foram de uma árvore para outra no equivalente a dois metros de distância. Elena, a dez metros deles, conseguiu fazer mais uma vítima fatal durante a movimentação.
— É só uma garota? — Uma das policiais perguntou a Aaron.
— Não, é a minha futura nora. Fique atenta — Trocou de pente rapidamente.
A alguns metros de distância, Megan e seus saltos descobriam o campo minado.
— Bebê, estou explodindo! — Gritava, entre um estouro e o próximo. — É a Al Qaeda! É a Al Qaeda!
— Megan, saia daí! — Aaron pediu.
Nem bem ouvira seu grito de alerta e já fez acionar a bomba maior no perímetro, que a arremessou contra um tronco de árvore dois metros à frente. Um ninho de passarinho cheio de ovos caiu em cima dela. Seus cabelos, agora, tinham gemas e fezes até as pontas.
— Megan, você está bem? — Ouviu o marido perguntar.
I hate this shit...
Diante disso, Aaron teria que conseguir sozinho.
Os policias estavam enfrentando um grande dilema. Se avançassem, corriam o risco de cair em uma armadilha fatal como seus companheiros menos afortunados. Mas se não avançassem, Elena atiraria até ter uma chance para fugir pelo outro lado. E não importava quantas balas disparassem em sua direção, era rápida demais no gatilho.
— Entregue-se, Elena! — Aaron tentou novamente. — Não há como escapar!
Neste quesito, a assassina discordava. Enquanto uma chuva de balas era despejada sobre ela, carregou o último pente. Esperou alguns instantes, suspirou fundo e atirou duas vezes.  Soube que tinha acertado quando viu Aaron cair no chão, sangrando no ombro esquerdo.
— Te peguei — Comemorou.
Agora lhe restavam dez balas, o suficiente para garantir sua fuga. Atiraria o quanto pudesse, então desapareceria por entre as árvores. Nunca saberiam do sistema de cavernas que aquela região montanhosa escondia por baixo das folhagens. Cortesia de Carter Van Der Hills, o herói que nunca tivera a oportunidade de conhecer. Mas iria.
Seu plano só não era perfeito por um simples detalhe. O homem que deixou para queimar vivo não aceitaria deixa-la vencer.
Grant já estava posicionado à retaguarda, com a mira sobre ela.
— Hey, vadia — Ele chamou. — Adivinha quem voltou dos mortos para morder o seu rabo?
Ela só teve tempo de arregalar os olhos antes do disparo. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis balas em seguida, direto no peito. Ela caiu no chão, indefesa, sem sua arma. Grant caminhou pausadamente até ela para checar. Estava mesmo de colete, embora  algumas balas tenham atravessado o material sintético.
— Algo a seu respeito era ao menos verdade? — Ele quis saber.
— Por favor... — Ela lutava por ar. Havia acertado os pulmões. — Eu não queria... eles me obrigaram... eu... eu te amo...
— Sinto muito, querida — Jogou a aliança em cima dela. — Eu não aceito — E puxou o gatilho.
Dylan ouviu o disparo ao longe. O tiroteio o guiou da cabana ao local mais provável onde Matty e Amanda estariam se escondendo. Agora, com o silêncio, vinha também uma certeza. Elena está morta, ou então continuariam atirando.
 Caminhou por alguns minutos floresta adentro. Estava quase chegando ao penhasco, de onde podia ver as luzes noturnas de Seattle. Pensou que Matty havia encontrado um jeito de descer, sem saber que a surpresa vinha do alto das árvores. Matty esperou que estivesse no ponto certo para pular e derruba-lo no chão.
De algum modo, conseguiria se livrar das algemas. Amanda.
A batalha que travaram foi das folhas secas ao corpo das árvores. Dylan levou bons socos do velho amigo, assim como Matty fora sorrateiramente atraído por seus truques. Rolaram na lama, numa queda drástica, assim Matty tomou posse da faca e cravou em seu braço. O grito de Dylan escoou floresta adentro.
Fuck! — Chutou Matty no rosto.


      Ficou de pé, olhando para a faca que atravessara seus músculos. Doía mais do que suas vítimas acabavam demonstrando.
Para retira-la, segurou no cabo preto e puxou sem piedade. Havia sangue para todos os lados, mas não que estivesse vendo. A escuridão não permitia que seus olhos fossem além da sujeira, da lama e da cor amarronzada das folhas mortas.
— Está tentando matar seu primo?
— Você não é nada — Matty respirava ofegante.
— Eu era a pessoa do outro lado da parede, ouvindo você chorar à noite. Acha que não sei o quanto dói? Seu coração solitário ainda sangra enquanto todo mundo que você ama se volta contra você.
— Não estou sozinho agora. E da próxima vez não errarei seu coração.
— Você fala como Brandon Rush, garotinho do papai.
Caminhou estritamente até ele, que levantava zonzo do chão. O chutou na barriga, assim tomando-o pelos cabelos.
— Quer que eu o segure como seu namorado morto? — Lhe disse, bem perto do rosto. — Ele te tocava assim? — Em seguida, o socou. Matty cambaleou para trás, ele o seguiu pelo mesmo caminho. — Foi tudo uma mentira, Matty. — Chutava-o e dizia. — Toda a sua vida. Até Dodger precisei convencer para que fosse sua amiga, pois ela o achava comum demais. Como isso o faz se sentir? Traído?
Com um puxão, Matty foi jogado contra um tronco de árvore. Agora estava cara a cara com ele, medindo forças para que a faca não passasse um centímetro por entre sua pele. Uma joelhada no meio das pernas, sem que o outro esperasse, resolveu o problema. Viu-o se afastar, o bastante para engrenar um soco.
Foi então que Amanda apareceu. Pendurou-se nas costas do assassino, tentando desequilibra-lo, e ele cambaleou para trás. Ela bateu as costas contra um tronco de árvore e o soltou. Caiu no chão, chutou seu joelho e partiu para cima. Não havia como guiar-se na completa escuridão; seus golpes ora acertavam, ora passavam por entre as sombras. Ainda foi capaz de quebrar-lhe uma costela, puxando-o pela camiseta e jogando-o de peito sobre as pedras no chão.
Dylan gritou estrondoso. Estava irado, com sangue nos olhos. A arma mais próxima, um galho de árvore, lhe serviria para o que estava pensando. Quebrou-o em dois nas costas de Amanda, com força bruta. De joelhos, ela foi golpeada mais uma vez. Estava tão próxima dos galhos pontiagudos, no chão, que o assassino não resistiu a ideia de fazer seus olhos serem perfurados. Forçou-a contra eles, com as mãos e os pés, com todo o peso de seu corpo.
A um centímetro da morte, Matty golpeou o assassino com outro galho de árvore. Ele o arrancou de suas mãos, acertou-o de volta, levou um empurrão de Amanda, golpeou ela no rosto, depois Matty, e foi jogado no chão, com Amanda por cima. De todas as formas ela tentou segura-lo, e morder seu pescoço, e arranhar seu rosto. Uma cotovelada no rosto e ela perdera equilíbrio. Um chute no maxilar, debaixo do queixo, e ela caíra desacordada.
Matty chegou a achar que não tinha mais chances.
Correu para o lado; Dylan o seguiu. Correu para o outro; Dylan o seguiu. A sua frente, um penhasco de oitenta e sete metros o esperava. Exatamente para onde Dylan gostaria de leva-lo.
Matty chegou a achar que não havia outro caminho.
Correu em direção ao penhasco mesmo assim. Dylan o alcançou antes de chegar à borda pontiaguda e cinza rochosa, a três metros da queda livre que acabaria com a vida de um deles. Mediram forças, com a ponta gélida da lâmina sobre o pescoço de Matty. Estava quase perfurando, podia sentir. Uma mancha de sangue já havia brotado e trilhado seu caminho até o chão.
— Morra! — Dylan praguejava.
Matty moveu seus corpos ao mesmo tempo para um dos lados. Dylan caiu sobre a rocha da borda; sua faca, no oceano que seguia o penhasco. E quando Matty tentou fugir, o assassino estava ali para segura-lo pelo moletom. Puxou-o com força para perto da rocha e montou em cima dele. Agora seus dedos sufocavam-no na garganta.
Matty balbuciou algo como um pedido de ajuda, ou um por favor incapaz de se espargir. Era verdade que as pessoas lembravam de sua vida inteira à beira da morte. Ainda podia ver o garoto que Dylan era quando tinham doze anos e acampavam no quintal de casa. Podia ouvir os gritos furiosos de seus pais sempre que insistia em assistir filmes de terror. O cheiro dos cabelos de Dodger ainda estavam com ele, dias depois de descobrir que nunca mais o sentiria.
E Amanda. O mais próximo que chegara de ser sua mãe fez-se em uma troca de números de telefone e conversas monossilábicas nada regulares. Tentou salvar sua vida, como Aaron. E falhou.
Seus olhos tornaram-se de um tom vermelho sangue aflitivo. Morreria a qualquer momento, a qualquer momento... a qualquer momento.
Foi tudo em vão? – Chegou a pensar. Soltou os braços de Dylan, que tanto tentara afastar, e enfiou os dois polegares nos olhos dele – seu ponto fraco após três cirurgias oculares, que só um melhor amigo saberia. Sangue escorria pela palma de sua mão à estranha melodia dos gritos do assassino. Estava cego. Havia perdido.
Matty o empurrou para o lado e engatinhou até a pedra mais próxima. Montado sobre ele, acertou-lhe duas vezes a cabeça. Só então os gritos cessaram para que desfrutasse da vitória silenciosa. Caiu sentado sobre a grama, os braços para trás e a cabeça elevada. O céu era estonteante quando as nuvens de chuvas davam lugar as estrelas e as luzes da cidade se apagavam.
Crack – Ouviu atrás dele. Ruby surgiu empunhada a um machado de cortar lenha. Fez seu ataque, mas o aço cintilou nas rochas quando ele desviou. Tentou outra vez e acertou a grama entre as pernas dele. Ele andou para trás com as mãos, ainda no chão. Levantou de súbito e correu de volta à floresta.
Ruby era rápida. Rápida demais.
Ela fez outro ataque, que ele desviou curvando-se para frente. No próximo, acertou a raiz de uma enorme sequoia. E no seguinte, um tronco de árvore. Matty pegou a arma pelo cabo, por cima das mãos dela, e bateu contra seu rosto. Ela o atacou de novo, tentando tomar sua arma de volta. Levou uma pancada no queixo com a parte de madeira, seguido de um golpe com a lateral do aço.
Àquela altura, Ruby estava prestes a desmaiar. Caiu aos pés de uma árvore, sagrando, sem poder se mover direito. Também havia perdido.
Matty ergueu a cabeça por um instante. A brisa noturna radiava calma e invernal no interior da floresta. Embora ofegante, pôde respirar aliviado por um breve momento.
— Você não venceu — A assassina lhe disse. — Tiramos muito de você para que vencesse em qualquer circunstância.
— Você sabe o que dizem. Tal mãe, tal filho — Achava que ela precisava ouvir.
Então cortou-lhe a cabeça, em um só golpe. O machado garantiu que houvesse uma ligação entre seu pescoço e o resto do corpo, mas não por muito tempo. Quando Matty o tomou de volta, a cabeça rolou para perto de seus pés.
O horizonte lhe dizia que estava prestes a amanhecer. Seattle já não era mais feita de cores vibrantes, destacadas pelo céu anegrejado. Era de um tom cinza-azulado sob uma densa neblina, que cobria a maior parte dos edifícios. Antes conseguia ter noção de onde sua casa estava localizada. Agora, assumia que os raios de sol vieram para confundi-lo.
Caminhou em passos lentos em direção ao penhasco. Aaron, Megan e Grant o encontraram ali, de frente para o sol nascente.
— Matty? — Aaron chamou seu nome. Nenhuma resposta. — Você está bem? — Pressionou a ferida no ombro esquerdo. Um curativo fora improvisado pelos cadetes contra sua vontade.
Amanda se juntou a eles logo depois. Olhava para o corpo de Dylan, prestes a cair do penhasco, sem muita desconfiança.
— Ele está morto? — Tomou a arma que Aaron oferecia. Cada um deles empunhava a sua.
— Eu também quero uma — Matty pediu.
— Para que você quer uma arma?
Para Dylan. Ele só não teve tempo de dizer.
O assassino levantou entre grunhidos, seus olhos sangravam em carne viva. Conseguiu ficar de joelhos, em cima das rochas. Não havia mais qualquer sentido de direção além dos sons ao seu redor.
 — Aaron? Megan? Vocês estão aí? — Perguntou. — Não consigo vê-los agora — Mostrou um meio sorriso sangrento. — Aonde está nossa querida Amanda?
Megan tentava convencer Aaron a puxar o gatilho quando Matty a interrompeu:
— Não — Esticou o braço até tocar no revólver. — Me dê a arma.
Aaron não via motivos para não o fazer. É para matar Dylan, certo?
Matty caminhou com a arma em mãos até o ponto em que o assassino sangrava. Encarou-o durante todo o trajeto, no lugar aonde ficavam seus olhos.
— Esse é você, Matty? — Dylan balbuciou. — Sempre soube que tinha o que era preciso. Acabe logo com isso.
— Por que eu deveria?
— Se você não o fizer, voltarei para pega-lo um dia. Nós sempre voltamos.
— Não cego — Engatilhou a arma e apontou para a cabeça dele.
— Faça. Vingue-se.
Matty estremecia a cada palavra. Não havia algo que quisesse tanto, talvez por isso lhe faltasse coragem para seguir em frente.
Amanda lembrou involuntariamente do momento em que perdera o irmão. Não quando o vira tirar a máscara de fantasma; quando percebeu que ele precisava morrer para que mais ninguém se machucasse. Nem ela, nem qualquer outra pessoa que entrasse em seu caminho. Brandon havia prometido matar seus pais, logo depois de acabar com os últimos sobreviventes. Nada parecia tão certo e atemorizante quanto matar quem mais amava para ter uma chance.
Perguntou-se se era isso que Matty estava pensando enquanto pressionava, tremulamente, a arma contra a testa do amigo. Perguntou-se se Dylan havia sido o irmão para o qual costumava correr, como Brandon fora o seu.
A um metro, seu olhar cauteloso encontrou o de Aaron. O que aconteceria a seguir não estava mais em suas mãos.
— Faça! — Dylan esperneava. Baba misturava-se a sangue e suor escorrido sobre as rochas, a poucos centímetros da queda livre. — Eu sou seu nêmesis! Eu matei seus pais e todos que você amava! Eu matei Dodger! Faça!
Matty puxou o gatilho uma única vez... em direção ao oceano.
— Você estava errado — Disse ao assassino. — Eu não sou meu pai. Por isso você viverá.
— Então você é fraco, assim como a sua mãe.
Matty o derrubou no chão com um gancho de esquerda.
Don’t fucking talk about my mom.
Caminhando até Amanda e Aaron, permitiu-se relaxar. Amanda não achava isso tão prudente.
— Ainda não acabou, Matty — Informou ao filho.
— Por quê?
O assassino levantou para um último susto diante de seus olhos, como o esperado. Amanda só fez mirar o revólver e puxar o gatilho, seguidamente, assim como fizeram Megan, Aaron e Grant. Uma vez que esvaziaram os pentes, Dylan teve um encontro com as rochas marítimas nos pés do penhasco. Sem vida, desde antes de sua queda.
— Como...? Você...? — Matty encarava a beira do penhasco, assustado. Talvez, um pouco impressionado.
— Eu sou muito pior que Brandon Rush — Os olhos de Amanda diziam o mesmo.
Ela jogou a arma no chão e deu dois passos em direção a floresta – apenas o que conseguiu. Sua vista embaçou, as pernas fraquejaram e ela derrapou de joelhos. Matty correu para ajudá-la, envolvendo um braço dela em seus ombros.
— Você está bem?
— O filho da puta me quebrou algumas costelas... — Disse, Tossindo.
— Olhem! — Grant os chamou atenção.
Ao longe viram um helicóptero da polícia sobrevoar as montanhas em busca dos sobreviventes. Não demorou muito para que chegassem a seu resgate, junto de todos os outros policiais que agonizavam nas armadilhas.
Muita coisa passou pela cabeça de Amanda por quando estavam debaixo da ventania das hélices. Era a primeira vez que abraçava o filho desde que o segurara nos braços, ainda recém-nascido, e mesmo que para conseguir se manter de pé. Tinha direito a um momento, uma pausa atemporal, ao menos.
E ele o de se sentir tão seguro ao seu lado.
φ

      A história que as pessoas contavam sobre os jovens assassinos de Seattle era diferente em cada localidade. Havia quem acreditasse no poder dos jogos violentos sobre as mentes vulneráveis de crianças e adolescentes. Havia os que defendiam teorias de conspiração envolvendo partidos teocráticos e totalitaristas. Para a imprensa, bullying seria o ponto de partida para a formação de jovens criminosos, como todos os relatos de tiroteios estudantis comprovam.
Em concordância, havia apenas um ponto inquestionável: As crianças de New Britain estavam a salvo. Do assassinato premeditado à lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e terrorismo doméstico.
Não era como se a história não tivesse terminado; para alguns, talvez vivesse eternamente. Mas não para eles.
A manhã de natal na casa dos Estwood reuniu quase toda a família. Amanda, Matty e Jessica chegaram cedo demais para ajudar na cozinha; no andar de cima, Megan tratou de acordar as gêmeas com duas horas de antecedência; e Grant acabara de ligar avisando sobre sua chegada. Megan não encontrava em lugar algum o jovem que Matty insistiu para levar.
— Estou indo! — Gritou para a campainha, a caminho de lá.
Grant a esperava do outro lado da porta com um buquê de hortênsias vermelhas nas mãos. Ao seu lado estava a nova namorada. Phoebe, se Megan arriscasse um palpite. Seus cabelos eram de um loiro acinzentado com raiz esfumada, e seus olhos de um azul piscina. O vestido bege lhe caíra bem. Tinha classe, como passara a exigir de todas as pretendentes.
— Feliz natal! — Grant a envolveu em um abraço.
— Feliz natal! — Respondeu de volta.
A jovem mostrou-lhe um sorriso simpático.
— Oi, eu sou Phoebe.
— É claro — Megan estendeu uma mão. Com a outra, segurou o buquê. — Muito prazer. Entrem, estamos fazendo os últimos preparos — Afastou-se da porta.
Phoebe foi na frente, em direção a sala de jantar. Grant ficou alguns passos atrás ao lado de Megan. O interrogatório poderia salvar suas vidas.
— Checou o passado dela? — Megan começou por aí.
— Sim.
— Verificou seu e-mail?
— Sim.
— Colocou câmeras de vigilância no apartamento?
— Sim.
— Bom trabalho. Distraia ela depois da sobremesa e eu hackearei seu celular. Quem quer piña colada? — Sorriu para a grupo.
Logo que voltara a cozinha, a campainha tocou pela segunda vez.
— Eu atendo! — Matty correu ligeiro.
O último convidado trajava um blazer preto e uma calça social na mesma cor. Seu corte de cabelo estava diferente desde a última vez em que se viram. Agora mais curto, também mais atraente.
— Hey — Era seu melhor cumprimento.
Não importava quanto tempo passasse, Axel sempre seria péssimo em cortesia social.
— Que pontual — Matty disse.
— Estou acompanhado — Ergueu a garrafa de vinho francês.
— Álcool? Amanda vai ama-lo — Abriu um espaço entre a porta para que ele entrasse.
Amanda, na cozinha, aproveitou para pedir-lhe ajuda. Havia coincidido com a ligação que Axel recebera no meio do trajeto até a sala de jantar.
— Preciso atender — Parecia estar pedindo a permissão do namorado.
— Beleza. Sente-se em qualquer lugar, já estou indo
Isso dependeria inteiramente do problema de Amanda.
O forno estava ligado na temperatura ideal, como havia comprovado. Não havia fumaça ou qualquer indício de incêndio, como da última vez. Só ficara tempo demais cozinhando, a ponto de queimar as laterais. Matty retirou a forma de uma vez e jogou em cima da pia. Ainda poderiam salva-la, com um pouco de paciência e delicadeza.
— Diga que eu não estraguei tudo — Ela já esperava por uma má notícia.
— Você não estragou tudo. Só precisamos cortar as bordas e servir as fatias centrais.
— “Mulher solteira de 35 anos queima lasanha na manhã de natal e é salva pelo filho” — Tomou um gole de sua taça de vinho, escorada no balcão. — Odeio os tabloides. — Atentou para a mágica que fazia com os talheres. — Onde aprendeu a fazer isso?
— Genevive nunca acertava nas receitas. Era meu trabalho fazer o melhor dos seus erros.
— Querido, como você comeu sua vida inteira?
— Eu tenho... mãos — Ele sorriu, sem graça. Estava pronta sua arte.
Agora degustava de uma outra taça de vinho, que poderia ter sido deixada ali por qualquer um, estrategicamente. Amanda não se importava que bebesse. Nem Aaron, nem Megan, ou Axel. Gostava de pensar que eram a família perfeita de um comercial de charutos importados, sem os bigodes.
Pela porta da cozinha, Amanda tinha uma clara visão do porte físico de Axel falando ao telefone, sorrindo para o nada, atrapalhando os cabelos, andando de um lado para o outro em frente à mesa de jantar.
— Ele é gostoso — Apontou para ele com a taça de vinho. — Com certeza o faria se o encontrasse no ensino médio.
— Mãe, qual é? — Ele quase sorriu. O constrangimento havia ganhado por 51% do seu senso de humor. Em conclusão, 49% ainda concordavam com a observação indiscreta. Suas bochechas ainda ficaram vermelhas, quando os olhares se cruzaram e pensou na possibilidade do outro estar lendo sua mente.
— Não o troque por uma menina — O jeito que ela andava dizia muito sobre a quantidade de vinho que ingerira em uma única virada de noite. — Eu o proíbo. Terminantemente.
E ele sabia que não poderia, uma vez cravado em sua memória a noite no parque de diversões. O primeiro encontro. Axel era mesmo persuasivo.
Todos juntaram-se à mesa com a bênção da anfitriã. Amanda e Aaron nas pontas privilegiadas; Matty, Axel, Grant e Phoebe de um lado; Sarah Michelle, Eliza, Megan e Jessica do outro. Vasilhas e formas foram passadas de uma mão a outra, à medida que se serviam.
— Bem, feliz natal — Aaron tomou um gole de vinho.
— Não saí de casa para comer salada — Jessica parecia decidida.
Na ponta da mesa, Amanda despejava uma poção de purê sobre seu prato. Ofereceu-se para ajudar as meninas, e sem querer, atrapalhou o movimento de Grant, que tentava deixar a salada no lugar. A vasilha de vidro quase caiu, Grant segurou firme e eles se entreolharam, sorrindo abobalhados. Pediram desculpas, ao mesmo tempo, o que os deixou ainda mais sem graça. Aaron foi o único a notar o clima.
— Você ainda tem a cicatriz — De frente para Axel, Megan não teria como não notar.
Ele não fora ferido gravemente durante a explosão na fazenda dos Fitzgerald, se não fosse por alguns ossos quebrados da costela e do braço direito. Um mês depois, a cicatriz de queimadura no pescoço era o único indicativo de que realmente estava lá. E sobreviveu.
— Ah, sim — Ele a tocou com a ponta dos dedos. — É um lembrete constante.
— Posso recomendar um especialista.
— Obrigado, mas não sei se poderia pagar.
— Minha amiga Tina conhece um cirurgião que não cobra nada se dormir com ele.
A mesa inteira caiu na risada.
— Ai meu Deus! — Amanda atirou uma tampinha de garrafa nela. Estava vermelha de tanto rir.  — Você é inacreditável!
— Por favor, não durma com seu cirurgião — Matty também entrou na brincadeira.
Axel não teve escolha senão fazer o mesmo.
— Eu não pretendo — Olhando para Matty, tinha certeza que estava no lugar certo.
Sarah Michelle, a menininha de cabelos loiros, olhava para eles com admiração.
— Eles são tão fofos — Dizia. — Posso ser a barriga de aluguel do seu bebê?
Os convidados fizeram outro coro de risadas. Se não estivessem tão confortáveis com a descontração, Aaron teria feito pior que cuspir metade do vinho no prato que comia.
— Por que você vai ter o bebê deles? — A menininha de cabelos castanhos perguntou a irmã. — Não podemos viver em uma base militar e desenvolver armas secretas com tecnologia alienígena se você estiver grávida.
— É claro que podemos, temos luvas italianas — Ela ergueu as mãos. — Mãe, podemos ficar grávidas?
— É claro, querida. Mas só quando crescerem... eu espero.
— Sim, quando crescerem. É a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma mulher — Amanda sorriu para o filho. — E quando eles crescem, podemos sempre coloca-los para ajudar em casa.
Sarah e Eliza trocaram um olhar que apenas elas podiam entender.
— Acho que ela precisa de uma doméstica — A de cabelos loiros comentou.
— Totalmente — A outra concordou.
Logo o assunto mudou – para qualquer coisa que viesse a calhar. Foram da gravidez a vida noturna de Amanda, o sonambulismo de Axel, programas de TV, micos em frente a celebridades, resoluções para o próximo ano, a vaga de Matty em Dartmouth e férias de verão.
Matty teve este sonho, algumas vezes, em que acordava na manhã de um feriado e seus pais o levavam de carro para pescar. Nunca soube o motivo da quebra de rotina; poderia ser natal, ano novo, ação de graças, ou dia da independência. Não precisava entender o que fosse além do efeito nostálgico de uma viagem em família. Às vezes Ian o ensinava a lançar o anzol. Às vezes ficavam sentados na canoa, observando a vida dos peixes. Às vezes acordava antes que chegassem ao lago, e sabia que, se continuasse a dormir, o sonho aconteceria do mesmo jeito.
O curioso era saber que nunca dormira o bastante para conhecer o final. Eles nunca voltaram para casa, nunca vira o céu escurecer, nunca ouvira os pais dizendo que estava na hora de ir embora. É isso o que significa para sempre?
Ele prestou atenção em cada um dos rostos que o cercavam. A nova família tinha algo em comum. Todos perderem alguém para algo tão obscuro que quase os devastou. Mas nunca, de verdade, se sentiriam incompletos. Matty sabia que não se sentia.
Amanda tocou sua mão, em cima da mesa, e sorriu-lhe o mesmo sorriso que guardara para os dias que já se passaram. Não precisavam dizer uma palavra; o entendimento vinha pelo olhar e pela companhia. Aaron, Megan e suas filhas. Grant e a terceira nova namorada do mês. Jessica, antes da separação com Amanda. Matty e Axel, para o que em pouco tempo viria a ser um relacionamento sério. E Chloe, na moldura do armário. E Erin, na próxima foto. Melanie, a irmã de Megan, também havia ganhado uma moldura na sala de jantar.
Estão todos aqui, Amanda então soube.
Foi a primeira manhã de muitas outras em que a família se reuniu na residência dos Estwood. Anos afundo, até a nova geração viria manter a tradição.
φ

O Tenente Schwarz vira a aproximação do oficial Hoyt pela vidraça da sala. Dispensou um dos cadetes, com quem conversara pelos últimos dez minutos.
— Tenente — O policial o cumprimentou, abrindo espaço para que o outro se retirasse. Tinha em mãos uma pasta de documentos, ostentada com a insígnia da Divisão de Homicídios de Seattle. — Saíram os resultados do exame de DNA de Dylan Hardesty.
— E?
— O Senhor precisa ver — Estendeu-lhe os documentos.
O Tenente leu, releu e releu. Não era possível.
— Deve haver algum engano. Peça para que os testes sejam refeitos.
— Pedimos três vezes, Senhor. Dylan Hardesty não é filho de Nina Marshall.
O velho homem pensou por um instante.
— Então quem é?

Epílogo
Madison – A Assassina
“Um homem sábio disse, certa vez, que todos nós temos o poder de matar em mãos, mas apenas os que não têm medo controlam a própria vida. Em essência, tudo lhe pertence, até mesmo quando você o tira”.
“Minha história não começou por acaso. Quase morri no ventre de minha mãe, após ela ter sido atacada por um famoso serial killer – que eventualmente descobri ser meu tio. Então fui tirada dela, com o único intuito de dar-lhe um motivo para seguir a chacina a qual o homem por trás deste plano dedicara sua vida inteira. Carter Van Der Hills, nosso verdadeiro herói. Se você for estúpido o bastante para acreditar nisso”.
“Esta é a parte da história que ninguém conhece: Carter tinha um ponto fraco. A inocência de uma criança, como a dele fora arrancada, era a única coisa que seu instinto assassino o levava a preservar. Nunca teria coragem de criar uma jovem menina inocente, como eu, para se tornar uma assassina vingativa. Queria que eu tivesse uma vida, um futuro, que não envolvia morte e carnificina”.
“Talvez devo agradece-lo, Senhor Van Der Hills, pela oportunidade de continuar viva. Porque não é o que podemos dizer do pobre garoto que você convenceu ser órfão por mérito de Amanda Rush. Também não justifica tê-lo escolhido porque era fruto de um crime sexual, assim como Matthew Hilliard. Mas eu entendi a referência”.
“De certa forma, você sempre me quis por perto para que tivesse um Plano C à sua disposição, por isso se certificou de que eu estudasse no mesmo colégio que seu pupilo e sua futura vítima. Bem, isso é muito, muito triste. Embora corra o risco de partir seu coração putrefato, devo dizer que não há nada mais patético que fazer um filme de terror. Na vida real, apenas uma coisa importa. O dinheiro”.
“Tenho muito disso agora que o corpo de Dylan apodrece no mar aberto. Lembra do seu advogado correspondente? Estou transando com ele e gastando o seu dinheiro em viagens, joias e roupas de grife. Ele me chama de Lolita; eu o chamo de banco central. E em alguns minutos, serei conhecida apenas como a herdeira”.
“Não sei onde Amanda Rush e seu grupo de sobreviventes patéticos estão agora. Não me importa que vivam vinte, trinta ou quarenta anos a partir daqui. Que morram de velhice, ou câncer no estômago, como o proletariado americano. Nunca mais os verei, e eles nunca saberão que Jamie era uma garota. Sinto muito, mamãe. Você mesma causou a sua morte. E eu estou bem longe de causar a minha para fazer valer o seu legado paupérrimo”.
“Quando contarem essa história, certifiquem-se de que eu esteja morta. Se viverem até lá”.
Fechou o diário num clique. Atrás dela, na cama, o homem que Matty conhecera como senhor Hardesty a aguardava, desnudo. O iate balançava de um lado para o outro, sob as ondas marítimas.
— Estou pronta — Ela disse, tirando a blusa, depois o sutiã. Foi até ele sutilmente.
Beijaram-se então; amargo para ela, doce para ele. Rolaram na cama, enlaçados, e ela ficou por cima. Apertou seu quadril contra o dele, ainda de calcinha. Se antes não ficara desnorteado com a simples visão de seu corpo, agora perdera a noção de si.
— Eu quero mais — Ele sussurrou no ouvido dela.
Havia uma faca, escondida atrás do travesseiro onde ele deitava a cabeça, a qual aguardara o grande momento. Madison o prendeu entre suas pernas, apanhou a arma e o apunhalou onze vezes seguidas no peito. Esta seria a resposta às súplicas sexuais que ele fizera. De tão bom que se achava por seduzir uma colegial três vezes mais nova, morrera à sombra de sua luxúria.
Ela estava encharcada de sangue. Cansada também, pelos movimentos repetitivos com a mão direita. Esperou alguns segundos na cama, fungando, arrumando o cabelo, antes de levantar. O espelho na cabeceira estava de frente para ela e refletia traços distorcidos pela decoração ornamental. Mesmo assim, suja de sangue, parecia deslumbrante.
— Sinto muito, querido — Disse ao jogar um lençol por cima do cadáver.
Jogou a faca pela janela circular e foi ao banheiro lavar as evidências. Vestiu uma roupa de praia que encontrara no closet, junto a um óculos lilás. A maleta de dinheiro encontrara embaixo da cama. Sete milhões de dólares, o que restava da fortuna de Carter Van Der Hills.
Desceu com ela até a lancha inferior, na garagem do iate. E desapareceu no oceano para nunca mais ser vista.
A identidade do verdadeiro filho de Nina Marshall continua um mistério.

Especial: A Punhalada 4 (2017) 
      

Aos dezoito anos, a maioria de nós segue enfrentando as escolhas mais difíceis das nossas vidas. Não é uma decisão justa, se levarmos em consideração nosso hábito constante de mudar de ideia. O que mudou, para mim, diante disso, foi não precisar pensar demais.
Não lembro qual o primeiro livro que escrevi ou a primeira narrativa que planejei. Mas lembro de, aos cincos anos de idade, pedir toda semana um fichário novo para minha tia, pois precisava colocar minhas histórias em dia. Ela me incentivava, na medida do possível. Só tive alguns problemas na hora de explicar como uma criança de cinco anos não tinha qualquer restrição quanto a histórias de terror – o que poderia indicar um problema, mas posteriormente virou uma admiração.
Estou contando tudo isso pois me considero infindamente sortudo por saber quem eu era, o que eu queria e onde poderia chegar antes mesmo que me fizessem essa pergunta. Não quer dizer que tenha sido fácil; sempre fui um garoto pobre de Belém do Pará que tinha aspirações maiores que a sua realidade. Mas todo o trabalho duro, todas as superações, vieram a partir de uma grande promessa. O dia em que estaria tão orgulhoso do meu trabalho que me sentiria genuinamente como um escritor, mesmo que apenas eu, ou os meus mais próximos, soubessem disso.
Preciso fazer bom uso do clichê agora, é inevitável. Me faltariam palavras se eu tentasse explicar o quanto o blog mudou a minha vida. É claro, são anos de trajetória, e centenas de reviews para aperfeiçoar minha escrita. Quando me lembro que tudo começou com o primeiro A Punhalada, em meados de 2011, é até difícil acreditar que acabou. Essa é a palavra que eu não queria dizer, talvez por isso o desfecho tenha chegado tão atrasado.
A Punhalada 3 terminou em 2014, com a promessa de que, o mais rápido possível, teria continuidade. Eu não tive a intensão de deixar o quarto livro na geladeira, simplesmente aconteceu. Cheguei, inclusive, a pensar que o momento havia passado e não conseguiria entregar um bom material. Se eu não fosse eu, o brasileiro, que não desiste nunca, estaria agora dando a notícia do cancelamento e não publicando o último capítulo.
Se quiser saber mais sobre o quarto e último livro da franquia, aqui vão algumas curiosidades.
• Nomes:
A ideia principal de execução dos assassinos era relacionar os nomes de suas vítimas a heróis de filmes de terror. Por isso há uma quantidade enorme de referências. Não preciso explicar todas, pois a história fez isso. Só queria ressaltar alguns nomes.
Grant: Homenagem ao ator Grant Gustin, de The Flash. Houve uma época em que eu era obcecado por ele. Amelia: Boa noite, Grey’s Anatomy. Ruby: Inspirada na personagem de Katie Cassidy na 3ª Temporada de Supernatural (embora a fisionomia das duas sejam opostas). Matty: É o meu nome americano masculino preferido. Se não fosse tão “americano” assim, juro que colocaria em um filho.
• Sexualidade
Alguns fãs ficaram confusos com a representatividade LGBT neste livro, talvez por não haver representações tão diretas nos outros três. É bom ressaltar que a ficção está evoluindo não só nos web-livros aqui do blog, mas como um todo na indústria do entretenimento. O conteúdo é adaptado para o consumo de todas as pessoas, não apenas de classes maioritárias.
Outra coisa que é bom explicar é que nenhum personagem “mudou” de orientação sexual para fazer valer a tal representatividade. Amanda já havia beijado uma garota em uma festa no segundo livro, portanto, havia traços de uma bissexualidade que apenas não foi explorada no começo. Bianca, a transexual, seria a primeira transexual em um slasher caso o roteiro fosse filmado. Matty é pansexual, Axel é gay, e isso não se chama militância, é apenas a realidade. Não vivemos em um mundo todo hétero, branco e cristão. É bom lembrar disso.
Boys Turn
Nos primeiros livros, reservamos um espaço – obrigatório – para enaltecer as mulheres da franquia. Tanto Amanda quanto Megan e Chloe ganharam cenas de perseguição exclusivas, e que não terminavam com elas sendo salvas por um homem (!). Para o quarto livro, a ideia era inverter os papeis. Queria que Aaron tivesse momentos só para ele e que Matty se transformasse em um final boy revolucionário. Vamos fazer os meninos sofrerem um pouquinho também, né?
• Final Alternativo
A ideia original era fazer com que Amanda cometesse suicídio se jogando do penhasco para acabar com os planos de Dylan. Optei pelo final feliz por covardia - ou amor, o que melhor servir. Não tive coragem de matá-la depois de tudo o que ela passou. Penso nela como uma versão feminina de mim mesmo, seria como acabar com a vida da minha irmã gêmea e deixar seu filho órfão. Pois é.
Também na versão original do roteiro, Aaron seria assassinado numa cena estilo “Casamento Vermelho”, onde Megan seria esfaqueada, mas sobreviveria para acertar as contas com o assassino. Desisti da ideia por falta de tempo para desenvolver a trama. Notem que Megan não tem uma participação mais ativa no final da história. Este é o verdadeiro motivo.
• Inspiração
A estética narrativa traz muitas referências a outras produções. O Capítulo 4: Detenção, foi inspirado em um episódio de Dawson’s Creek (1998), que, basicamente, recriava a narrativa do filme Breakfast Club (1985). Já para o Capítulo 3: Não Me Esqueça, utilizei elementos apresentados na série Teen Wolf (2011-2017), onde também havia um time de lacrosse. É algo realmente importante, pois é a partir deste esporte que se intensificam os dilemas entre o protagonista e seus colegas.
A morte de Lila no celeiro, no Capítulo 10: Anjo da Morte, foi inspirada em uma cena de Halloween 5: The Revenge of Michael Myers (1989). O filme é bem fraco em comparação aos dois primeiros, incluindo na morte do casal do celeiro. Decidi, então, fazer o que não fizeram. O mundo do slasher está cheio de produções que desperdiçam grandes oportunidades. Ainda bem que nossa franquia não é uma delas.
A perseguição de Matty no Capítulo 11: Final Boy, possui elementos de filmes diversos. Para começar, a ideia era fazer uma perseguição tão longa quanto a de Helen Shivers em I Know What You Did Last Summer (1997). A cena do jogo de gato e rato no celeiro foi inspirada tanto na perseguição de Gale em Scream 2 (1997) quanto na perseguição de Mia em Evil Dead (2013). Quando Matty encontra a cidade, os autofalantes são acionados e ele sente que vai enlouquecer. Esta cena é uma homenagem a cena clássica de House of Wax (2005), quando Carly, a protagonista, corre para o meio da rua e a cidade parece viva ao seu redor.
Madison: The Killer
Durante o terceiro livro, pensei na possibilidade do filho de Nina Marshall estar vivo, e ser, na verdade, uma menina, ao contrário do que os protagonistas acreditavam. Mas era cedo demais. O filho de Nina ainda era uma criança quando Carter começou sua vingança. Seria melhor deixar para o próximo livro, e assim tudo ficaria bem amarrado.
Como Dylan já estava cotado para viver o assassino, a única maneira de aproveitar este plot twist foi colocando Madison como a verdadeira herdeira que nunca será encontrada.
• É mesmo o fim?
Não queria ter que dizer isso, mas nossa história acabou. Dezesseis anos se passaram na cronologia da saga. Tivemos tempo para explorar absolutamente todas as fases da vida dos nossos protagonistas. Eles já chegaram aonde deveriam, com quem deveriam, e como deveriam. Não me sinto no direito de mexer com isso para prolongar uma história que já foi contada.
Quatros livros são o suficiente? Se não for, vão gostar de saber que estou em processo de pré-produção de uma nova saga slasher – dessa vez, 100% original. Compartilharei ela com vocês assim que estiver pronta. Pode demorar, é claro, então sejamos pacientes. Basta saber que não deixaremos o legado de A Punhalada morrer. Essa saga marcou minha adolescência e eu nunca vou me desfazer de verdade do que construímos aqui.
       Muito obrigado por nos acompanhar. Até a próxima era, pessoal! 

A Punhalada
2011 - 2018
Comentário(s)
0 Comentário(s)

Nenhum comentário