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Livro | A Punhalada 4 - Capítulo 8: Eu e Ela


Matty deixou a casa de Dylan no começo da tarde para pegar o restante de seus pertences na casa dos pais. Ian foi quem lhe abriu as portas, inevitavelmente surpreso em revê-lo.
— Filho — Disse, sorrindo. — Você está aqui.
— Sim, eu, eu deixei algumas coisas aqui... — Matty estava preocupado até demais em não fazer contato visual. — Pensei em passar para pegar. Tudo bem por vocês?
— É claro.
— Matty? — Ouviu Genevive gritar, do outro cômodo. — É a voz do Matty? — Ela correu até a porta. — Filho! — Envolveu-o em um abraço apertado e não requisitado. — Eu sabia que você voltaria. Eu disse, Ian, ele não conseguiria ficar longe de nós por muito tempo.
Matty a afastou delicadamente.
— Vim pegar o restante das minhas coisas, se estiver tudo bem.
— Oh... — Ela olhou para Ian, depois de volta para o filho. A alegria de minutos atrás havia desaparecido dos seus olhos. — Tudo bem. Pode entrar, é a sua casa.
E assim Matty o fez.
De longe, e por pouco em silêncio, eles o observaram colocar na mochila tudo o que queria levar para a nova casa – embora sua mãe insistisse para deixar as pequenas lembranças, apenas para que houvesse algo dele na casa quando saísse pela porta outra vez. Para ele, era sua maneira pessoal de fazê-lo se sentir culpado pelo que havia decidido. E ela estava conseguindo.
Matty teve muito tempo livre para refletir nas noites de chuva que passara acordado, na casa de Dylan. Sentimentos que poderiam ter criado raízes, como raiva e luto, desapareceram aos poucos, e à medida que aceitava sua história exatamente como ela era. Porque todos tinham uma história; algumas cheias de fantasmas e arrependimentos, mas que não mataram.
Todos nós sobrevivemos ao mundo. Esta era a questão absoluta.
— Você vem nos visitar? — Perguntou sua mãe quando ele passou pela sala de estar, segurando a alça da mochila.
— Eu não sei...
— Somos seus pais, Matty. Sem você, não temos mais nada.
— Eu sei — Ele assentiu.
— Então por que você não fica? — Seu pai pediu.
Matty, de súbito, já havia pensado na melhor resposta.
— Eu sei que vocês mentiram para mim para tentar me proteger de uma verdade que mudaria minha vida. E sei que fizeram o melhor que podiam para que eu tivesse tudo o que Amanda não podia me dar. Mas agora, por mais clichê que possa parecer, eu não sei como ser Matthew Hilliard e Matthew Rush ao mesmo tempo. Passo a maior parte do meu dia tentando encontrar alguém no meio termo para eu me sentir confortável com a vida que eu tenho, mas a cada dia que passa surgem novas questões e um novo desafio. Não quero machuca-los, nem exclui-los da minha vida. Estou vivendo dia após dia, apenas esperando pelo momento em que tudo vai voltar a fazer sentido... se voltar a fazer sentido.
Uma lagrima escorreu no rosto de Genevive. Ela entendia; queria não entender e agir como a mãe desacerbada e super protetora que sempre fora, mas entendia perfeitamente até onde seu filho poderia ser parecido com ela mesma.
Levantou-se do sofá, com os lenços nas mãos, e foi até ele para um último abraço. Último, por enquanto.
— Faça o que precisa fazer — Ela sussurrou. — Eu te amo. Nós te amamos.
— Eu também amo vocês.
Antes de ir, ganhou um beijo na bochecha, que ficou marcado em batom vermelho. Pegou a bicicleta do lado de fora e pedalou de volta à casa de Dylan, pelo caminho mais longo. Era bom sair de casa e ver pessoas. Era bom saber que tudo ainda estaria em seu devido lugar, por mais que não estivesse.
Chegou à casa de Dylan com um sorvete em uma das mãos, que acabara por jogar a casca fora antes de descer. Guardou a bicicleta na garagem e entrou na casa, seguindo direto para o seu quarto. A surpresa o estava esperando com uma arma na mão e um olhar desconfiado. Amanda Rush.
— Pare! — Ela destravou a arma. Tinha-o em uma mira tão boa que o acertaria mesmo que tentasse escapar.
Ele levantou as duas mãos para o alto.
— Ai meu Deus, Amanda... o que...?
— Me dê o seu celular.
— Okay — Ele estendeu a ela.
— Fique aonde está.
Ela nem precisava pedir. A última vez em que Matty ficara tão assustado foi o quando o assassino o atacou durante a detenção estudantil.
— Verifique — Amanda ordenou ao seu celular.
Matty achou se tratar se algum tipo de aplicativo de espionagem, mas Amanda estava apenas dando uma ordem ao técnico de informática da Divisão de Homicídios de Seattle.
Em dois minutos, ela foi notificada com um prognóstico.
— Está limpo. Tome — Ela jogou o aparelho para que ele agarrasse. — Aonde está seu amigo? — Guardou a arma na cintura.
— Dylan? Ele... saiu para caminhar.
— Sério?
— Ele foi ao West Oakley ver as meninas negras gostosas jogando basquete.
Amanda não estava surpresa, apenas decepcionada.
— Isso faz mais sentido.
— Quer me dizer o que está acontecendo aqui e porque tinha uma arma apontada para minha cabeça?
— Você gosta de filmes de terror, Matty?
Ele hesitou; era seu cérebro tentando entender a relevância da pergunta.
— Sim?
— Já assistiu “Pânico 4”?
— Nenhum deles. Meus pais sempre disseram que eram filmes horríveis para que eu perdesse o interesse — Quase deu um ar de risos quando as lembranças surgiram.
— Jill Roberts fazia o papel de vítima perfeita até se revelar a assassina principal e tentar matar a protagonista, sua prima. Tudo é possível em um filme de terror.
Matty mostrou um sorriso sarcástico.
— É sua maneira sutil de dizer que eu posso ser o assassino?
— Uma vez confiei em um garoto inocente que tinha os mesmos olhos que você. Não vou cometer o mesmo erro agora.
Ele assentiu. Sua expressão foi do sarcástico ao olhar penoso a cada palavra que digeria.
— Eu sou assim tão parecido com ele? — Ele perguntou. Era a hora da verdade.
— Não — Ela caminhou até a janela e suspendeu as persianas. Ninguém na rua; silêncio absoluto. — Desconfiar de todos foi o que eu aprendi quando percebi que as pessoas que eu amava estavam mortas e eu não. Alguns deles tentaram me matar, o que pode ser ainda pior — Olhou para ele. — Você tem amigos?
— Alguns. Não muito.
— Que bom. Você só precisa ser forte o bastante para salva-los ou mata-los antes que o matem. Aqui — De trás da almofada tirou um colete à prova de balas; da bota esquerda, uma arma em tamanho reduzido, que arremessou para ele antes que pudesse se preparar.
E ele não estava preparado. Mal sabia por onde segurar, ou se corria risco de atirar em si mesmo por simples manuseio.
— O que você está fazendo? Eu ainda nem fiz 16 anos!
— E se quiser chegar aos 18, é melhor leva-la consigo. Ponha o colete se decidir sair de casa nos próximos dias, ele será de grande ajuda para o terceiro ato.
Matty não estava acreditando.
— Você é completamente louca!
— Só estou me certificando de que você não morra.
— É, você sempre faz isso, não importam as consequências.
Ela parou de se mexer, de repente. Olhava pela janela a sua frente, de braços cruzados, como se pudesse ver algo além de uma rua vazia e casas ornamentais do subúrbio.
— Não tenho as respostas que você procura, Matty.
— Você acha que minhas perguntas são assim tão complexas?
— E não são? — Olhou para ele. — Você quer saber porque eu resolvi seguir em frente com a gravidez. Quer saber porque forjei minha própria morte e pedi para que Aaron o arranjasse uma família. Quer saber porque nunca o procurei, mesmo depois que os crimes chegaram ao fim, para contar a verdade. Sei disso porque foram as mesmas perguntas que Brandon fez a si mesmo quando descobriu que era adotado. Então não, não tenho algo a dizer que você gostaria de ouvir.
— Me teste — Ele deu um passo à frente.
Ela riu, com o canto da boca; era como olhar em um espelho. Matty não lembrava o pai em quase nada, apesar do que achava. Havia saído mais como ela, teimoso e destemido. Nem um, nem outro, às vezes. E às vezes, um pouco dos dois.
— Nos primeiros quatro meses de gravidez, eu pensava em aborto todos os dias. Algo como um relógio biológico, que sempre me lembrava todas as minhas opções do momento em que eu acordava ao momento em que deitava para dormir. Um dia, voltando do seu primeiro ultrassom, comecei a pensar em quanta dor meu irmão havia causado. Eu sabia que o mundo seria um lugar melhor se ele nunca tivesse existido. Todas aquelas famílias que perderam um ente querido ainda teriam um motivo para sorrir no natal e ano novo e ainda chorariam lágrimas de felicidade quando seus filhos ingressassem uma faculdade”.
 “Esta ideia confortava meu coração, na maior parte do tempo. Mas naquele dia eu havia chegado ao meu limite. Eu não sabia quem me tornaria se decidisse que Brandon nunca havia existido. E lá estava eu, uma sobrevivente de estupro, tentando se livrar das consequências de uma tragédia para que ela, um dia, deixasse de ser verdade. Isso nunca aconteceria. Em 20, 30, 40 ou 50 anos, tudo ainda seria verdade. Eu só teria que lidar com tudo sozinha, mais uma vez”.
“Não poderia ser tudo sobre o que aconteceu comigo, mas poderia ser sobre o que eu decidi quando novamente tive uma escolha. Eu precisava de algo que, em 20 anos, me fizesse olhar para trás e perceber que minha vida fez sentido, apesar dos esforços do meu irmão”.
“O nome Matthew veio a mim involuntariamente. Tinha acabado de descobrir que estava esperando um menino e não conseguia parar de pensar na história que a Doutora Leighton havia contado sobre seu filho. Ele esperou seis meses por um doador de rins compatível, mas morreu durante o processo cirúrgico. Desde então sua mãe mantem uma de suas fotos emolduradas em seu consultório, como um lembrete constante de que seu trabalho existe para impedir que outras mães percam tanto quanto ela já perdeu”.
“Ele era Matty, do mesmo jeito que você seria Matty. Por isso Aaron pediu aos seus pais para que seu nome não fosse trocado. Em minha memória, você sempre seria Matty”.
Ele sentiu algo pulsar dentro do peito. Não era o coração acelerado, ou qualquer outra coisa que tenha sentido antes.
— Seguir com a gravidez foi a única decisão certa que eu tomei em toda a minha vida. Então agora... — Ela empurrou o colete contra o peito dele. — Não estrague tudo.
Ele sorriu, um pouco mais alegre do que gostaria.
— Tudo bem.
— Vamos arrancar a cabeça desse desgraçado.
Dylan entrou no quarto logo em seguida, totalmente despreparado. A primeira reação de Amanda foi tirar a arma da cintura e apontar para sua cabeça.
— Por favor, não atire! — Ele gritou, as mãos para o alto. — Eu sou virgem! Eu sou virgem!
Amanda trocou um olhar risonho com o filho. Guardou a arma de volta na cintura e passou por ele como uma femme fatale.
— Parabéns, você pode até sobreviver. — E então olhou para o filho. — Feliz aniversário, Matthew.
— Congratulations, you may actually live — And then looked at her son. — Happy birthday, Matthew.

φ

Ela dirigiu até a cobertura alugada dos Estwood, no centro norte da cidade. Usou o próprio cartão chave, que Megan lhe havia entregado, e trancou-se para uma tarde solitária na adega. E teria sido, de acordo com a agenda dos amigos, se Grant não tivesse se instalado horas no local, com a mesma ideia.
Encontraram-se na mais constrangedora das hipóteses. Ela misturando cinco bebidas diferentes no mesmo copo, e ele saindo do banheiro, só de toalha.
— Amanda! — Com o susto, a toalha caiu.
Amanda viu o que pôde no tempo que ele levou para cobrir-se novamente.
— Olha só, se não é o garotão do papai — Passou por ele, remexendo o copo, em direção ao sofá. Esperava que ele não se ofendesse com a piada de duplo sentido.
— Você também tem as chaves?
— Sim — Ela mostrou a ele, entre os dedos. — Eu e eles somos assim tão próximos. Você não tem seu próprio quarto de hotel para desfilar?
— Elena está recebendo visitas. Algo sobre o vestido de casamento perfeito.
— Bem, sinto muito por interromper seu banho. Achei que estaria sozinha aqui.
— Eu também. Sinto muito, vou me vestir. Isso já ficou constrangedor o suficiente.
Ela bebericou um gole da sua mistura enquanto o observava se afastar. Algo lhe passou em mente, que tão pouco fizera importar o fato de que ele estava com o casamento marcado.
Levantou-se do sofá e ligou para Megan.
— Hey, estou na cobertura. Grant também está aqui. Confiamos nele?
— Grant? Ai meu Deus, Amanda, é claro! Ele é quase um filho para mim. Por que desconfiaríamos?
Amanda ainda confiava na própria intuição.
— Porque estou meio atraída por ele, então pode ser o nosso assassino.

Eram sempre os mais bonitos, não eram?

Capítulo 9: Vocês Estão Todos Mortos (Dia 28 de Dezembro)
O título do próximo capítulo é uma homenagem a uma música do filme original chamada Youth of America, da banda Birdbrain. Declaramos aqui o início oficial do terceiro ato, em uma festa de halloween na fazenda Fitzgerald. Feliz aniversário, Matty!
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