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Livro | A Punhalada 4 - Capítulo 3: Não Me Esqueça



     O Roosevelt High School abriu suas portas às sete e meia da manhã para receber a demanda de alunos. Não era um comitê de boas-vindas, mas os jovens tinham um estranho talento de fazer tudo parecer uma festividade. Alguém estava queimando os testes de física da última semana; ciclistas faziam manobras radicais entre os corrimãos do estacionamento; os atletas testavam-se no arremesso de futebol americano, talvez apenas porque futebol fosse a grande piada do Roosevelt e dos amantes de lacrosse. Dylan e Dodger quase esbarraram em dois apressados que caminhavam descuidados.
— Acho que a área está limpa — Disse Dylan, manuseando o celular. — Okay, não surte. Tem um demônio a sua esquerda.
— Aonde? — Dodger perguntou, deixando o celular a sua frente. O demônio virtual que a encarava, próximo aos armários de serviço, tinha a pele vermelha, dentes afiados e olhos totalmente pretos que pareciam sempre em movimento. — Ai meu Deus, ele está chateado.
— Se você tivesse essa aparência, também estaria. Use o sal.
— Eu não tenho mais!
— Sobrou algum bastão ultravioleta?
— Espere, acho que consigo.
Dodger abriu sua maleta de itens e selecionou a arma de luz brilhante que mais se aproximava da sugestão do amigo. E com apenas um movimento vertical, no mundo real, o demônio se desintegrou dentro do jogo. O avatar de Dodger estava a salvo. Por enquanto.
— É tão divertido poder focalizar minha raiva nos demônios virtuais. Melhor que baseball — Ela ironizou, a voz um pouco mais acalorada do que gostaria.
— Espere até chegar a hora de dormir. Pode ter um monstro embaixo da sua cama ou dentro do armário, assim como quando éramos crianças. Deveríamos processar os realizadores do jogo.
— Prefiro um monstro embaixo da minha cama a uma loira vestida de branco sempre que vou ao banheiro. Nossos avatares podem cometer suicídio?
Dylan esperava que sim, apenas pela genialidade.
Caminharam juntos pelo próximo corredor, com o celular em mãos, até enfim encontrarem seus armários. Ruby Donahue, a esquisitona da turma de literatura que colecionava moletons, caminhava timidamente na direção contrária, segurando os livros contra o peito como se eles a protegessem do mundo a sua volta. Bem, talvez protegessem de verdade. Ninguém havia descoberto sobre o que ela tanto lia porque ninguém se interessava o bastante.
— Oi Dylan — Ela disse, passando direto por eles.
— Hey... Ruby... — Ele respondeu, um tanto confuso.
Era a primeira vez que Ruby Donahue lhe dirigia a palavra desde que a puberdade os separou em classes sociais no ensino médio. Dodger tinha um palpite, entretanto.
— Ela tem uma queda por você — Disse enquanto organizava os livros em seu armário.
Dylan escorou-se nos armários fechados, de frente para ela. Podia ver Ruby caminhando até a sala de professores por cima de seus ombros. Suas sandálias pareciam pantufas; seus cabelos, negros da altura dos ombros, ainda estavam molhados; e sua saia... em que década aquele estilo havia feito sucesso?
— Ruby Donahue? Sem chances — Ele disse. — A religião dela deve ser contra a monogamia.
— Ela não é religiosa, idiota. Só é reservada. Ela provavelmente sou eu em algum universo paralelo em que você e Matty não existem.
— Ela é legal, é inteligente — Dylan tinha certeza. — Provavelmente a pessoa mais normal do colégio, se considerarmos o comportamento selvagem destas espécies. Acho que daria certo se um “oi” significasse “manda nudes” nesta década.
— Até eu já te vi pelado, agora trate de explorar o mundo.
Dylan olhou para os lados; nenhum sinal de Matty. E a primeira aula estava prestes a começar.
— Onde Matty está? — Quis saber. — Pensei que tinha dormido na sua casa.
— Deixei que dormisse um pouco mais, ele precisava. Já deve estar chegando.
— Olha ele ali — Dylan fez sinal com a cabeça.
Matty tinha acabado de dobrar o corredor em direção a eles. Pela primeira vez desde que entrou para o time, fazia sua chegada com o uniforme preto de lacrosse e um jeans desbotado. Seus dois amigos sabiam que este estranho dia iria chegar.
— Hey — Ele os cumprimentou. Poderiam dizer que não era o jovem mais alegre e nem o mais triste que estavam vendo.
— Alguém está de ressaca — Dylan observou.
— Nem me fale. Eu tive um pesadelo com o filme que vimos ontem.
— Foi ruim?
Matty fez só digitar sua senha para a porta de seu armário abrir.
— Não foi ruim, só me fez pensar — Puxou o zíper da mochila e tirou dois livros para guardar. — Então eu pensei demais e não consegui mais dormir.
— Hoje à noite tem a sequência. “A Entidade 4: O Início” — Dylan lembrou. — Diga que não vai amarelar, porque foi muito difícil contratar Lindsay Lohan para a morte inicial e seria um desrespeito ao gênero não assistirmos.
— Estarei lá depois do treino. Assistiria até o vídeo do seu nascimento só para não voltar para casa.
A lembrança acabou deixando Dodger em uma posição desagradável. Agora ela estava prestes a fazer o mesmo com Matty.
— É uma boa hora para falar que sua mãe ligou hoje de manhã? — Indagou, assim que a porta do armário foi fechada.
A resposta automática de Dylan e Matty soou como uma repreensão. Não, eles disseram em uníssono. Na dúvida, era sempre Não. Quando se tratava da família de Matty, Não era a primeira coisa em que deveria pensar.
— Okay — Ela fez sua defensiva sarcástica. — Estamos na vibe adolescentes rebeldes que não ligam para os pais. Eu gosto disso, aprovo totalmente, não vamos mais tocar no assunto.
Eles estavam de acordo com sua colocação, mas esqueceram o assunto tão rápido quando ele surgiu. A elite do time masculino de lacrosse tinha acabado de chegar aos corredores; e como sempre acontecia, todas as atenções voltaram-se a eles.
— Olha, é o time de modelos da Calvin Klein — Dylan ironizou.
Os dois garotos na terceira fileira eram Jimmy e Doyle, os desajustados sortudos que ganharam um uniforme apenas por serem bem-sucedidos na brutalidade que o esporte exigia. Jimmy, visivelmente acima do peso; e Doyle, tão alto quanto um jogador de basquete. O jovem da esquerda, atrás do capitão, era Ty Curtis, um modelo negro e ativista da vida real. Qualquer homem interessado por moda e acessórios conhecia seu rosto. O restante poderia vê-lo em outdoors espalhados pela cidade, ou até mesmo em comerciais para a tv.
À direita, segurando um bastão nas costas feito um anarquista, estava Axel Dommett, o co-capitão do time. Tinha os cabelos negros, a pele alva e os olhos mais verdes que o Roosevelt já conheceu. Tão atraente, e tão arrogante como ele só. Matty tinha pena dos alunos do primeiro ano que se aproximavam demais de uma mente tão criativa para o mal.
O loiro atlético e pretensioso que liderava o grupo era Mason Harding, o famoso capitão do time de lacrosse. Tal qual se podia esperar, era dono de um ego imensurável, que também fazia jus ao seu saldo bancário. Ser o único herdeiro do homem mais rico da cidade vinha com certos privilégios, por isso era tão fácil — e divertido — odia-lo. Ele também deveria estar odiando todos ao seu redor, se pudessem arriscar um palpite.
— Você também vai se tornar um manequim para andar com eles? — Dylan perguntou ao amigo, no exato momento em que Mason esboçava um sorriso convencido a sua audiência. — Vocês já têm uma roupa combinando.
— É, não vai rolar — Matty deixou claro.
Logo atrás vinham Adia Thompson e Lila Blackwell, as jovens responsáveis pela bem-sucedida equipe de líderes de torcida. As semelhanças, porém, terminavam aí. Adia era uma jovem de personalidade forte; gostava de assistir luta livre, dançar R&B e montar penteados afro-extravagantes para as clientes do salão de sua mãe, como só uma negra de berço saberia. Lila era mais delicada e introvertida. Tinha os cabelos loiros passando os seios, o corpo de uma jovem de quatorze anos e os olhos castanho-escuros, assim como os de seu pai.
Não era uma questão de beleza; as garotas mais populares do Roosevelt High também eram donas de uma inteligência formidável. Sebastian Gilroy, o ex quarterback do time de lacrosse, só precisava de uma chance.
— Hey Adia, está bonita hoje — Disse ao vê-las passar.
— Me chupa, Sebastian — Foi a resposta mais sincera que ela tinha a oferecer.
— Quando?
— Quando sua ereção durar mais que uma música inteira dos Beatles.
— Tudo isso?
Yesterday tem dois minutos e quinze segundos — Ela virou rapidamente para caçoa-lo com o olhar, caminhando de costas e lentamente. — Não é seu dia de sorte se você precisa contar.
E então eles já estavam afastados demais para que pudessem trocar farpas.
— Ele não vai desistir — Lila olhou rapidamente para o jovem desolado que deixaram para trás. — Não deveria tê-lo beijado naquela festa se a ideia era rejeita-lo.
— Foi só um pequeno deslize. Eu estava bêbada e ele mostrou suas cicatrizes de automutilação. Não consigo resistir a um homem que não consegue resistir a morte.
À frente delas, no último lance de armários, notaram uma pequena aglomeração de estudantes.
— Festa de halloween na fazenda Fitzgerald, neste sábado — Ouviram uma voz irritante repetir várias vezes.
Conheciam-na perfeitamente. Madison Summers, a abelha rainha. Por que eram sempre as loiras, esbeltas, ricas e populares?
Adia e Lila odiavam a franja que cobria sua testa inteira como a de uma menina de seis anos de idade. Odiavam seu conversível preto que sempre combinava com seus acessórios. E também odiavam a maneira como se vestia e desfilava pelos corredores, como se tudo a ela pertencesse. Curvas manipuladoras, diziam entre si. E às vezes dentro das salas de aula. E às vezes na internet, para que todos vissem.
— Olá, garotas — Madison mostrou um sorriso falso. — Festa de Halloween na fazenda Fitzgerald neste sábado. Querem vir? — Estendeu um dos panfletos cor-de-rosa, mas assim que Adia se aproximou, puxou-o de volta para perto de si. — É claro, se seguirem as exigências. Não queremos fazer uma cena e arruinar a diversão de todos.
Adia tomou o panfleto de suas mãos.
— Sabemos como uma festa de halloween funciona — Olhou os dizeres, apenas para constatar todos os absurdos que já esperava. — Mas aparentemente, você não. Já ouviu falar em internet? É muito mais prático por lá. Você sabe, papeis são tão... — Rasgou o panfleto em vários pedaços e os deixou cair diante dos olhos dela. — Frágeis.
— É por isso que tenho centenas de cópias. Tome outro — Madison ofereceu, só para vê-la transformando-o em uma bola amassada. — Não se preocupe, tenho muito mais — E deu as costas para as duas garotas, jogando um panfleto para o ar a cada passo.
Adia e Lila nada fizeram além de observar. Logo o sinal tocou, recrutando alunos e professores para suas determinadas salas.
O acerto de contas viria depois.
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— Eu tenho uma pergunta que pode arruinar o dia inteiro de todos vocês — Disse o Professor Dormer, em frente a sua mesa. — Vocês leram o livro?
Apenas quatro pessoas levantaram a mão. O restante da turma fez só reclamar e inventar desculpas esfarrapadas, no que seria a mais bela melodia de um funeral acadêmico.
— Enviei a todos uma cópia digital para que pudessem ler em seus smartphones. O que será que aconteceu dessa vez?
— Eu acho que meu cachorro tem algo a ver com isso — Disse Axel.
— Eu pedi para que minha mãe tomasse conta do meu celular e ela o lavou como se fosse um pijama — Disse Dodger.
— Minha avó morreu — Alguém gritou na fileira de trás.
— Calem a boca — Mason ordenou em seu tom de voz sublime.
O professor só fez coçar o cavanhaque loiro e sorrir. Admirava o senso de humor de sua turma tanto quanto seus pais admirariam as notas finais.
— São coisas que todo professor gostaria de ouvir — Ironizou.
— E se o livro for uma droga? — Disse Matty, na segunda fileira em direção a porta. Não era para sair tão alto, nem para ter saído de sua cabeça. E agora a turma inteira lhe voltava a atenção.
— Parece que alguém leu o livro. Diga-nos o que achou, Senhor Hilliard.
Matty não fez cerimônia.
— Dizem que cada livro tem seu valor, cada autor tem seu potencial e cada leitor tem uma opinião. É isso que algumas pessoas chamam de literatura. Eu, pessoalmente, chamo de eufemismo. Não há beleza poética em um livro que conta a história de um homem covarde que teme tanto a influência do mundo moderno que acaba assassinando a própria esposa em nome da religião. É um tanto ofensivo tentar entender a mente de um homem machista que achou que a vida de uma mulher estava em suas mãos e ele sabia o que era melhor para ela. Não há literatura aí, não importa o quão lindas sejam as metáforas.
— Dá um tempo, Hilliard — Madison se pronunciou. — Qual a diferença entre um livro sobre crimes passionais e os filmes de terror que você tanto idolatra, onde jovens são torturados e assassinados? Estamos falando sobre entretenimento, não causas morais.
Matty não estava surpreso. Era óbvio que Madison Summers tinha uma visão fascista sobre cada assunto que pudessem abordar.
— Filmes de terror não tentam romantizar assassinatos. Eles são exibidos de forma brutal para entreter o público, mas no final, torcemos sempre para a mocinha. Sem falar que é um tanto frustrante quando o vilão consegue o que quer e ninguém está de pé no final.
— Tudo bem, Senhor Hilliard — O professor cruzou os braços. — Qual seu tipo de filme?
Slashers.
A turma então se dividiu. Alguns riram, outros observavam calados, e havia aqueles que não faziam ideia do que estavam falando.
— Acho que você está duas décadas atrasado — Adia decidiu entrar no jogo. — Slashers morreram. Eles tentaram remakes e séries de tv dos grandes clássicos até ficarem desgastados. Agora os demônios são nossos melhores amigos.
— Sei que meu timing não é perfeito — Matty precisava admitir. — Mas os clássicos ainda estão aí. Assassinos mascarados perseguindo babás e monitores de acampamento sendo mutilados. Há um motivo para que todas as pessoas consigam relacionar estas pequenas referências sem que eu precise dizer o nome dos filmes.
Axel fez uma careta.
— Eu não entendo. O que há de tão especial em ver um assassino perseguindo suas vítimas até sobrar apenas uma?
— Por que gostamos de filmes de terror? — Matty falava com a turma inteira. — Alguns diriam que é pela adrenalina, ou o medo importuno durante um jump scare. Eu diria que a explicação vai um pouco além. Costumamos dizer que nada daquilo é real, mas acaba sendo, por alguns minutos, enquanto assistimos, e por mais que estejamos cientes de que se trata de uma história de ficção. Nosso cérebro é suficientemente poderoso para simular, com a ajuda da adrenalina, todos os sentimentos angustiantes daqueles personagens sem nos tirar da nossa zona de conforto. Estamos sentados numa cadeira de cinema ou no sofá da sala de estar, não numa floresta escura no meio do nada. O filme é o grande responsável por nos proporcionar essa emersão assustadora numa história que só queremos viver como espectadores.
“É claro, nem todos os filmes são iguais. O que estou querendo dizer é que, quando se trata de slashers, o conceito de realidade pode ser um pouco mais elevado em relação a emersão ficcional. Digamos que você esteja voltando do mercado e encontra a porta da frente aberta. A possibilidade de uma garotinha fantasma estar ali, esperando por você, é mínima – provavelmente nula. Podemos dizer o mesmo de um assassino mascarado? Atualmente há 120 serial killers ativos só nos Estados Unidos. Pode ser seu vizinho, seu colega da faculdade, ou um parente distante que você só vê convenientemente nos feriados. O que o impediria de pegar uma faca na cozinha e mata-lo? Ele é humano, de carne e osso, com um cérebro astuto e funcional”.
“A verdade é que alienígenas, espíritos malignos, zumbís, vampiros, lobisomens e animais mutantes permanecem apenas nos filmes depois que terminamos de assistir. Já o assassino de carne e osso... ele é o único que pode emergir à nossa realidade; e qualquer um de nós pode viver um filme de terror. Basta estar no lugar errado, na hora errada”.
A sala inteira fez silêncio absoluto. A sala inteira, exceto...
— E se já vivemos em um filme de terror sem perceber? — Ruby perguntou timidamente.
— Sua cara é um filme de terror — Sebastian riu com os outros garotos.
Matty, por algum motivo, nem havia percebido a chacota.
— Só precisamos esperar o primeiro corpo aparecer — Respondeu à ela. — Não deve demorar, temos apenas uma hora e meia para descobrir quem é o assassino. 
— E se quiser estar na sequência, é bom ser esperto — Adia completou.
Seguindo a ideia, Axel avaliou cada rosto a seu redor. Mason olhava o celular, Ruby comia um tufo de cabelos, Matty rabiscava uma folha qualquer do caderno, Adia sorria como se estivesse à frente de todos, Lila observava a multidão sem entender, Dylan brincava com a caneta no nariz e Sebastian coçava a virilha.
— Estamos mortos — Concluiu.
É claro, se tudo fosse apenas um filme de terror.

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Os portões de Fort Lawder abriram-se em frente a Aaron pela primeira vez. Ele avançou com o carro vinte metros pelo jardim, então foi abordado pela elegante Policial Janine Profit, de tranças nos cabelos negros e óculos escuros.
— Senhor Estwood — Ela cumprimentou.
— Oficial Profit — Ele respondeu.
— O Tenente Schwarz o espera no lado de dentro.
— Obrigado.
Aaron fez seu caminho até a entrada, entre paramédicos, detetives e funcionários do local que circulavam pela propriedade. Encontrou o Tenente Aldean Schwarz na recepção, dando instruções a seus especialistas forense.
— Aaron! — Gritou quando o viu. — Cheguei a pensar que não viria.
— Não foi fácil. A imprensa enlouqueceu, tive sorte por conseguir sair de casa — Olhou ao redor; havia sangue por toda parte. — Então, parece que temos um banho de sangue.
— E um Prefeito furioso querendo saber que porra está acontecendo na sua cidade. Estas foram suas exatas palavras.
— Eu também detesto eufemismo — Aaron caminhava junto a ele, os olhos pairando sobre cada detalhe. — Serial Killer?
— Você me diz, esta é sua especialidade. Por que alguém mataria três enfermeiros e um dos assassinos mais notórios dos Estados Unidos?
Aaron tinha alguns palpites. Infelizmente, nenhum estava de acordo com o que as autoridades gostariam de ouvir.
— Iremos descobrir. Alguma câmera de vigilância?
— Esta é a surpresa do dia — O tenente o guiou até o balcão da recepção, onde especialistas trabalhavam para reestabelecer o sistema. — Fort Lawder foi hackeado ontem à noite, durante a execução dos crimes. Todas as gravações foram apagadas e o acesso de todos os funcionários revogado. Seria impossível fazer isso daqui de dentro, então podemos afirmar que o responsável pela queda do sistema e o assassino não sejam a mesma pessoa.
— Precisamos chegar a fonte do acesso.
— Meus homens estão trabalhando nisso desde que chegamos.
— Posso tentar?
O Tenente trocou um olhar cauteloso com um de seus homens.
— Não sei o que você pode fazer além do que já tentamos.
— Há um motivo para que eu seja um auxiliar registrado da polícia de Chicago — Aaron sentou-se de frente para o computador. — Eu sei que a mágica só acontece aonde não vemos.
 — O palco é seu.
Tendo dez anos para aperfeiçoar suas técnicas, Aaron aprendeu muito mais do que o governo gostaria que fosse ensinado. Tentou por cinco minutos, apenas, e já havia uma brecha para identificar a fonte de acesso do hacker misterioso. Pelo menos ele achava se tratar de uma brecha.
Quando a linha de código foi concluída, a armadilha virtual tomou forma. O monitor fez-se em vermelho vivo e uma caixa de diálogo abriu no automático, mostrando uma foto de Amanda Rush em seus 18 anos. As palavras “Eu estuprei essa vagabunda” piscavam sem parar enquanto manchas de sangue formavam-se paralelamente em seu rosto.
— Ai meu deus... — Aaron conseguiu colocar para fora.
E então os monitores começaram a faiscar, até os que permaneceram desligados desde o começo das investigações. Aaron e toda a equipe conseguiram se afastar a tempo, mas nada puderam fazer pelos equipamentos. Tudo derretia, explodia e deteriorava sem qualquer motivo aparente.
— O que está acontecendo? — Perguntou o Tenente.
Aaron abaixou vagarosamente as mãos que o protegiam e olhou com pesar para os destroços.
— É uma sequência.
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O time masculino de lacrosse fora inteiramente convocado para um treino fechado no gramado enquanto o Treinador Hitch acertava os últimos detalhes do jogo de sexta-feira na sala da diretora Fellows. Quando Matty e Dylan chegaram, Mason e seus seguidores já haviam monopolizado a maior parte do campo, das bolas e dos cones vermelhos para um treino ainda mais reservado entre seu círculo de amigos.
O primeiro a seguir o escopo de vinte arremessos foi Axel. Depois vieram Ty, Doyle e Mason. E agora era novamente a vez de Axel, deixando o melhor amigo encarregado das bolas que iria usar.
 — Prepare — Mason disse, e Axel arremessou diretamente ao gol. Jimmy, o goleiro, mal sabia onde a bola havia se alojado no final da jogada. — Boa velocidade.
— Obrigado, mamãe — Assim que Mason posicionou outra bola na cesta do taco, Axel arremessou. Outro gol espetacular.
— Desse jeito Jimmy ficará magro demais para estar no gol e não teremos nenhuma utilidade para ele.
— Isso, ou o veremos rasgar o uniforme outra vez — Ty ressaltou, à medida que Axel preparava um novo arremesso.
Pelo ângulo da jogada, a bola acertou a ponta dos dedos de Jimmy, que tentava antecipar os movimentos de Axel de braços abertos em frente ao gol. A dor momentânea o fez gritar um palavrão inventado por ele mesmo no momento de atrito, só para alimentar ainda mais o escárnio dos amigos. Para Mason, era como se uma montanha tivesse acabado de reagir a dores físicas.
— Acho que ele precisa de uma manicure.
— Espere, eu fico no seu lugar — Ty correu para o gol, tratando de colocar suas luvas.
— Qual é, Ty, não seja um idiota, ele vai sobreviver — Disse Axel.
Ty se posicionou de pernas e braços semiabertos.
— Cale a boca e arremesse.
Então Axel o fez. A defesa mostrou-se falha novamente para o arremesso seguinte, mas esta era apenas a tática especial do melhor arremessador dos Morcegos de Roosevelt.
— Então, festa na minha casa depois do jogo. Preciso de você lá — Mason lhe disse, como um ultimato. Fez uma careta para enganar os últimos vestígios de luz do sol que batiam contra seu rosto.
— E o seu pai?
— Ele disse que vai viajar a negócios, o que quer dizer que ele estará fodendo uma das alunas do programa residencial o final de semana inteiro.
— Acho que ele tem mais sorte que a gente — Axel fez o próximo arremesso.
— Lila estará lá. Você sabe, se você ainda se pergunta o tamanho do sutiã que ela usa.
— E ganhar uma ordem de restrição? Achei que esse era o seu sonho.
— E daí se ela encontrou pornô gay no seu celular e você tentou beija-la a força para provar que não era? Superem isso. Todo jogador é enrustido no colegial.
Axel o censurava com os olhos terminantemente.
— Sério, Mason?
— Tudo o que eu sei é que você não acertou nenhuma bola na rede desde que comecei a falar. Você vai continuar me ouvindo ou vai ignorar as distrações para se concentrar no jogo? Na sexta você não terá escolhas.
Então era apenas mais um teste de aptidão por métodos sociopatas de Mason Harding, não a primeira conversa honesta sobre o incidente com Lila. Axel parecia mais relaxado. Posicionou-se no gramado, olhou para seu alvo e arremessou. Logo outra bola foi preparada por Mason, dessa vez com um ingrediente especial na jogada.
— Não pense no nosso goleiro sem roupas, pense em fazer o gol — Disse para provocar.
Axel já havia entendido como o jogo funcionava. Apenas respirou fundo e colocou outra bola no fundo da rede. Mason estava o mais próximo de orgulhoso que alguém que só amava a si mesmo poderia estar.
— Parabéns, você não é um desperdício de investimentos.
— Agora vamos ver quem você é — Axel estendeu o bastão para ele.
Jimmy e Doyle sentiram o clima pesar no que poderia ser o próximo duelo de morcegos. Viram Mason sorrir com desdém, agarrar o taco e se posicionar no lugar de Axel para o escopo de arremessos. Não o chamavam de capitão do time porque era o jovem mais rico do colégio, ou chamavam?
— Senhoritas — Disse antes de começar, como se pedisse licença.
E vinte arremessos depois, não havia mais ninguém para questionar sua identidade. Matty e Dylan assistiam tudo do banco de reservas.
— Homo Sapiens. É isso que os livros não te contam — Dylan fitou os sapatos do amigo, o olhar confuso. — O que você está fazendo?
— Polindo.
— Para que eles precisem ser polidos de novo depois do treino?
— Por que você arruma sua cama de manhã, quando levanta, se ela estará desarrumada de novo quando acordar no outro dia?
Dylan levou três segundos para validar mentalmente a informação.
— Bom argumento. É claro, se ignorarmos a possibilidade de você sair sem um dos braços desse campo. Seus sapatos sujos seriam o menor dos seus problemas nestas circunstâncias.... — Ouviu o celular de Matty vibrar ao lado. — É a Valerie? — Perguntou, olhando para a foto que piscava no visor sem parar.
Valerie Sheltom era a garçonete de cabelos negros e maquiagem pesada que Matty conhecera na última festa de Adia em que teve o desprazer de estar. Conversaram por cinco minutos – o suficiente para pedir o número de seu telefone –, e então ela simplesmente desapareceu. Na próxima vez em que a viu, estava tão empenhada em beijar Mason que por pouco os dois não se fundiram a parede.
— Isso é estranho — Disse ao desbloquear a tela.
— O que?
— Ela me deu o número na festa da Adia, mas não lembro de ter dado o meu.
— Ela deve ter pedido a alguém — Dylan não parecia interessado neste pequeno mistério. — O que diz?
— “Feliz dia das bruxas, Matthew Rush” — Ele leu em voz alta.
Só poderia ser um engano.
— Acho que esta mensagem não era para você — Dylan comentou.
— Talvez...
— Então ela te dá o número do celular, depois brinca com a língua do Mason, e agora envia uma mensagem porque te confundiu com outro Matthew. Bem, essa garota deve ser muito, muito solteira, no mínimo.
Quando Dylan colocava dessa maneira, Matty não tinha escolha senão acreditar que Valerie era uma total perda de tempo. Matthew Rush, fosse quem fosse, era o único que deveria se preocupar.
— Todos no campo, agora! — Gritou o Treinador Hitch. — Roupa de treino contra uniforme. Vocês sabem suas posições.
— Acho que chegou a hora — Matty disse, já com o taco em mãos.
— Okay — Dylan pôs-se em pé junto a ele. — Não se esqueça dos três F’s. Foco, força e... e... — Algo lhe faltou, e a primeira palavra que veio à mente saiu por vontade própria. — Fatalidade.
— Foco, força e fatalidade?
— Algo assim. Apenas vá lá e arrebente.


     Matty concordou com um sorriso e correu para o campo. De sua posição, notou que a maioria dos seus adversários – vestidos com a camiseta de treino – faziam parte do círculo de Mason. Isso não seria um problema, ou seria? Ainda estava convencido de que poderia ser o melhor primeiro dia de treino de um calouro do Roosevelt High.
E foi. Por um breve e milagroso período de tempo.
Só nos primeiros minutos, marcou quatro gols contra o goleiro Jimmy e escapou de uma dúzia de investidas de Axel e Mason. Fez parecer que as melhores táticas da dupla de morcegos não podiam contra sua velocidade e pontaria. Em outra tentativa frustrada de impedi-lo, Axel caiu de peito de gramado e assistiu o garoto emplacar o quinto gol seguido. Não foi culpa sua, no fim das contas; Matty sabia que estava lidando com um jogador destro, por isso investiu em uma ligeira saída pela esquerda quando o oponente achou tê-lo dominado.
— Ele é muito rápido — Axel disse ao levantar.
Pela primeira vez desde que perderam a partida contra os leões de Aurora, viu Mason ostentar uma expressão preocupada.
— Ele é pequeno e está usando isso a seu favor.
— O que faremos?
— Formação Tubarão — E ali estava seu sorriso malicioso de sempre.
Axel apenas sorriu de volta, certo de que seu plano daria certo.
Ao soar do apito, Axel correu até a extremidade de sua posição e Mason passou a marcar os jogadores do outro time. Quando chegou até Matty, Axel o atacou por trás e Mason o atacou por baixo, derrubando-o no chão de uma vez.
Tudo bem, Matty pensou. Sabia que lacrosse podia ser um esporte violento e que nenhum jogador gostava de perder. Então pôs-se em pé, tirando o excesso de areia do seu uniforme, e voltou a posição anterior.
O apito soou novamente, e assim todos os jogadores se espalharam pelo campo. Bastou Matty tomar posse da bola para que Axel o atacasse por trás e Mason por baixo, do mesmo jeito que fizeram antes.
Agora ele sabia que havia algo errado. Mason e seu time estavam perdendo o jogo; tudo graças ao calouro que por pouco não conseguiu uma vaga no time. Era como um filme americano sobre o colegial, onde os garotos populares se sentem ameaçados e precisam impor respeito usando violência. Se o treinador não estivesse tão distraído com seus documentos, Matty poderia compartilhar suas suspeitas a ele. E mesmo assim, não era uma garantia de que Mason e seus amigos fossem recuar.
— Mais uma! — O treinador apitou, sem nem nota-los.
Matty voltou a posição anterior, pronto para se defender. Foi quando notou a mudança de abordagem dos outros jogadores. Mason não fora designado a posição que costumava; em seu lugar, viu Axel, encarando-o como se fosse um prato de comida prestes a ser devorado; e no lugar dele, viu Mason. Não era bom, definitivamente não era nada bom.
O próximo assalto teve início. Matty logo correu na direção contrária a que antes decidira. A bola passou de taco em taco, por vários membros do time uniformizado, até encontrarem uma brecha para entrega-la a ele. Era tudo o que Mason precisava.
A trave estava bem a sua frente, e sua posição no campo determinava uma jogada quase perfeita para marcar pontos. Matty segurou firme no taco e se preparou para o arremesso... o que nunca viria a acontecer. Dessa vez, sem poder antecipar, Mason o atacou por trás e Axel por baixo, derrubando-o com a face virada para o gramado. Se não fosse o capacete protetor, teria perdido alguns dentes.
— Isso deve doer... — Dylan fez uma careta. Do seu ponto de vista, parecia tão doloroso quanto fora para o amigo.
Os jogadores tiraram o capacete e olharam para Matty. Ele não estava machucado, como a maioria deles achava. Estava furioso, de uma maneira que Dylan nunca o vira antes. Tudo o que fez foi jogar o capacete no gramado, levantar do chão e partir para cima de Mason.
— Qual a porra do seu problema? — Gritou, acertando-lhe um soco no nariz.
Mason caiu sangrando no gramado, Axel devolveu o soco por ele e Matty caiu de costas, sem um dos sapatos. Alguns riam a uma distância segura da briga formada no gramado. Outros tentavam conte-los, por mais que não houvesse muito a fazer. Havia também os que assistiam com água na boca, como os jovens do clube de música da arquibancada. No final, sobrou até para Jimmy, que havia tirado uma fatia de pizza velha do bolso apenas para vê-la ser derrubada no calor da briga. Isso não era um problema; bastou junta-la novamente e fingir que nada havia acontecido.
— Parem com isso! — Ouviram o treinador gritar, cada vez mais alto. Só assim os outros jogadores conseguiram afasta-los. — O que está acontecendo aqui? Vocês perderam a cabeça?
Lado a lado, os três brigões do time exibiam suas feridas de batalha; provavelmente a única coisa que tinham em comum. Mason com o nariz inchado, Axel com um olho roxo e Matty com um corte nos lábios e outro na testa.
— Detenção. Vocês três. Agora mesmo — Disse o treinador. — O resto de vocês para o vestiário. O treino de hoje acabou.
O melhor primeiro dia de treino de um calouro do Roosevelt High? Matty teria rido de si mesmo se pudesse mover os lábios.
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A luz verde do identificador de cartões acendeu em um bipe, liberando o acesso à porta dos fundos. Assim que entrou, Amanda apontou seu smartphone para cada uma das câmeras do corredor a sua frente, até o visor mostrar que era seguro prosseguir.  Não que precisasse da ajuda de seu aplicativo hacker para forjar repetições nos monitores da portaria. O homem responsável pela segurança do hospital, de uniforme azul, dormia feito bebê em seu posto, como fazia todas as noites. Ninguém estava assistindo, e o aplicativo de Aaron se certificaria de que não houvesse qualquer registro de que estava lá.
O necrotério, de acordo com seu mapa virtual, estava localizado na ala oeste do quarto andar. Só havia duas opções. Pegar o elevador mais próximo, sem se importar com o mecanismo que informava a portaria quais elevadores estavam em movimento e para onde iam. Ou subir quatro andares de escadas com seus saltos de dez centímetros. Neste caso, só havia mesmo uma opção válida. A mais segura.
Amanda pegou o primeiro vão de escadas e subiu. Seguiu na direção informada pelo mapa, dobrando um corredor, e deu de cara com a primeira alma viva do hospital. Era uma enfermeira – vestida dos pés à cabeça em seu uniforme quadriculado – que levava um paciente da internação para a sala de cirurgia designada. Se não tivesse voltado e se escondido atrás da parede, tinha certeza que teria sido vista.
Mais câmeras foram hackeadas à medida que ela continuava seu trajeto pelos corredores. Por um momento, achou que tivesse se perdido e precisou fazer uma releitura do mapa desde sua chegada. Foi propício para perceber os primeiros sinais de que não estava sozinha. Um barulho de passos ecoou baixo e vagaroso, como se indo em sua direção. Olhou para trás subitamente, sem medo do que poderia ver. Não havia ninguém.
O plano era fingir que tinha sido apenas a sua imaginação e continuar caminhando, mas lá estavam os mesmos passos, formando uma melodia desagradável junto a seus saltos. Ela olhou para trás uma última vez, certa de que estava sendo seguida. Apressou os passos, discretamente, e dobrou o corredor, onde encontrou equipamentos de limpeza – deixados ali por puro descaso. Tirou seus saltos ligeiramente, jogou-os dentro do balde, tomou o esfregão em suas mãos, quebrou-o em dois e correu até a porta mais próxima. Esta, dando acesso a um armário.
Assim ela esperou, com a estaca improvisada em mãos.
Não demorou muito para ouvir os mesmos passos se aproximando novamente. Pararam por um breve momento, e sem nenhuma explicação, continuaram a seguir. Estavam cada vez mais perto, cada vez mais perto, e cada vez mais perto. Amanda podia dizer pela maneira altiva com que o barulho se intensificava.
Então ela viu surgir uma sombra através da vidraça da porta. Preparou a estaca para atacar, suas mãos em volta da maçaneta. Nessas circunstâncias, o susto foi inevitável. Amanda atacou, Megan caiu no chão e as duas gritaram em uníssono.
— Por favor, não me mate! — Megan suplicou. — Eu serei Joyce Summers no remake de Buffy!
Amanda abaixou a estaca, seguido de um grande suspiro. Poderia ser alívio. Ou poderia ser raiva.
— O que você está fazendo aqui, Megan?
— Não é óbvio? — Ela ficou de pé, passando a mão pelos cabelos. — Estou seguindo você.
— Por que?
— Porque eu sabia que se pedisse para vir junto, você diria não. Seus saltos — Os entregou.
— É claro que eu diria não — Curvada, os colocou novamente. Não parecia nem um pouco interessada em saber como foram parar justo nas mãos de Megan.
— Aaron sabe que estou aqui, então tudo bem.
— Não para mim.
Megan checou o corredor para saber se não havia ninguém por perto.
— Precisamos saber se Kyle está realmente morto — Sussurrou.
— Você precisa ir para casa.
— Cale a boca e mate aquelas câmeras. Não quero me tornar um viral da internet e ser conhecida como uma mulher branca invasora.
Não havia escolha quando se tratava de Megan. Amanda fez o que ela pediu, não obstante a sua atitude. Duas câmeras a menos para que se preocupassem.
Elas encontraram a porta dupla para a área do necrotério dobrando o próximo corredor à esquerda das janelas triangulares.
— Por que é tão frio aqui dentro? — Megan alocou os braços em volta de si. — É por isso que eles guardam os mortos em sacos pretos? Deus, tomara que eles guardem os mortos em sacos pretos.
— Muito empático.
— Se você não percebeu, estamos prestes a ver uma dúzia de cadáveres pelados. Não existe uma forma politicamente correta de dizer o quanto isso será traumatizante.
A sala de necropsia ficava logo a frente. O clima era gélido e notavelmente pesado, mas também sancionava algo um pouco além do familiar. Tudo o que viam era azul e cinza, escuro e claro, metal e vidro. E é claro, não estavam sozinhas. Das doze mesas de metal, pelo menos nove estavam ocupadas com cadáveres em sacos de couro negro, cada um devidamente etiquetado. No fim da sala podiam ver a fileira de frigoríficos individuais.
A casa estava cheia naquela noite de quarta-feira.
— Venha — Amanda tomou a frente entre as mesas metálicas. Megan, como estratégia, preferiu centrar suas buscas nos frigoríficos. — Procure por Fuller. Os sobrenomes vêm primeiro nas etiquetas.
— Não consigo entender essas letras, parece outra língua.
— A língua dos médicos — Até então, Amanda já se encontrava na segunda fileira de corpos.
— Maldita Shonda Rimes arruinando nossas vidas. 18 Temporadas de Grey’s Anatomy deveriam ser o bastante.
Chegando a última mesa, Amanda parou por um segundo. “Fuller, Kyle” — Leu na etiqueta. Dez anos se passaram e aquele nome ainda era capaz de açoita-la com todas as lembranças irresistíveis.
— Encontrei — Avisou.
Megan deu a volta entre as mesas e pairou em frente ao corpo, ao lado dela. Por um breve instante nenhuma das duas disse uma palavra, ou sequer se moveu. O cadáver de um ex amigo; finalmente Amanda Rush demonstrava ter medo de alguma coisa.
— Você primeiro — Megan disse.
E Amanda sabia que ela estava certa.
Respirou fundo, puxou o zíper e só parou quando pôde ver o corpo com mais clareza. Sim, era ele, o reconheceria em qualquer lugar com aqueles cabelos loiros e as tatuagens de motoqueiro. Bem, pelo menos aquelas que ele decidiu não remover. A única coisa que não era familiar aos olhos dela, além da barba de um idoso de noventa anos, eram as estranhas cicatrizes que iam do pescoço ao tornozelo. Algumas pareciam esferas, outras lembravam símbolos satânicos, e havia aquelas que tentavam contar uma história em uma língua muito antiga. Restava apenas saber como um interno do Fort Lawder, rigorosamente supervisionado, conseguira armas afiadas para se mutilar.
Amanda precisou tocar para ter certeza do que estava vendo.
— Ai meu deus, ele envelheceu quarenta anos em dez — Megan fez uma careta, com a mão sobre o peito. — O que é isso? — Apontou.
— Cicatrizes de automutilação — Olhou para unhas que Kyle havia deixado crescer assustadoramente. — Ele fez isso com as próprias unhas — Estava aí sua resposta.
— O que significam?
— “A lucidez impede a humanidade”. É algo que Kyle costumava dizer.
— Então, ele está mesmo morto.
— Sim.


     E sem que percebessem, o corpo ensacado na mesa detrás se levantou. O assassino moveu sua cabeça lentamente para observar as duas pela pequena fenda de ar que havia feito no couro. Viu-as em frente ao corpo de Kyle, criando teorias para resolver o novo mistério e tentando entender o que todas aquelas cicatrizes significavam. Não teria outra oportunidade como esta.
Ele esfaqueou o saco de couro e deslizou para baixo vagarosamente até se ver livre e revelar a fantasia de fantasma que um dia pertenceu a Carter Van Der Hills.
Então ele atacou.
— Cuidado! — Em um movimento rápido, Megan empurrou Amanda em direção a outra mesa.
A faca do assassino passou de raspão pelo braço esquerdo de Amanda e cravou no rosto do cadáver de Kyle. Assim, Megan lançou uma bandeja de instrumentos cirúrgicos no rosto do mascarado, mas estava tão próxima que não pôde se defender contra o chute lançado diretamente em seu peito. Ela caiu de costas sobre a porta de vidro de um armário de substâncias químicas, enquanto Amanda corria. O assassino tentou esfaqueá-la novamente e ela pulou por cima de um dos cadáveres, derrubando-o consigo.
Não havia armas, ou qualquer artifício que pudesse lhe dar vantagem. Então ela levantou e correu pela passagem dos frigoríficos, com o assassino em sua cola. A primeira ideia que veio a sua cabeça foi executada numa fração de segundos. Conseguiu abrir uma das portas de cima após ultrapassa-la, fazendo-a bater em cheio no rosto do assassino e derruba-lo no chão.
— Megan, venha! — Chamou-a.
Megan cortou caminho pelas mesas e ambas correram o mais rápido que podiam. E enquanto podiam.
No meio do corredor, perceberam que estavam impossibilitadas de pedir ajuda.
— Não estou com meu celular. Aonde está o seu? — Amanda perguntou, sem parar um segundo. Mal lembrava de onde vira caindo o seu smartphone quando o assassino se revelou como um dos corpos ensacados.
— Está na minha bolsa, acho que deixei cair.
— Merda! Por aqui! — Amanda decidiu. Com um pouco de sorte, talvez não precisassem do mapa virtual para encontrar a saída.
Elas correram, correram e correram, sem qualquer senso de direção.
— As escadas! — Amanda apontou. — Vamos.
Mas assim que chegaram ao primeiro degrau, o fantasma ressurgiu pelo corredor contrário e lançou a faca em direção a Megan. Dessa vez, foi Amanda quem a salvou, colocando-se na linha de frente do ataque e agarrando o braço do assassino antes que a faca cravasse em seu peito. Megan caiu um lance inteiro de escadas pelo atrito. Já Amanda, conseguiu acertar bons chutes no assassino para que ele se afastasse.
Ela avançou a toda velocidade, assim imprensando-o contra a parede do outro lado. Sem a faca nas mãos, graças apancada, ele usou os punhos para ataca-la como podia. Não foi uma luta justa, porque ele estava preparado para ser o super-homem que a última sequência da franquia precisava que ele fosse. Com movimentos de luta ele conseguiu domina-la e imprensa-la contra a parede assim como fizera com ele. O golpe de misericórdia veio depois, quando a segurou pelos cabelos e bateu sua cabeça no concreto o mais forte que podia.
Atordoada, e com a visão embaçada, Amanda deslizou para o chão. Pôde vê-lo caminhar até sua faca próximo as escadas. Megan, ela pensou; embora soubesse que o trunfo do assassino estaria na morte de Amanda Rush, e apenas dela. Cairia num sono profundo em breve, seu corpo dizia. O cheiro de sangue também não ajudava.
Sua força veio com a adrenalina no momento crucial, que salvaria sua vida. Quando o assassino se aproximou para a última punhalada, ela o chutou no estômago, fazendo-o se curvar de dor. Depois chutou-o no rosto, para que fosse ao chão.
Sua cabeça deu voltas cintilantes e seu estômago revirou. Ainda estava com a visão turva e sombreada, como se não pudesse vencer o sono. Não sabia como conseguira ficar de pé e seguir em frente, só sabia que o estava fazendo. Até foi capaz de colocar uma maca no caminho do assassino, no meio do corredor. Mas sua sorte só iria até aí.
O assassino a puxou pelos cabelos e a arremessou contra a vidraça da sala de observação cirúrgica. Novamente estavam medindo forças com a faca de açougueiro pressionada contra o peito de Amanda, o que deixava o vidro cada vez mais frágil. Se quebrasse, ela cairia dentro de uma sala cirúrgica impecável; mais precisamente, na bancada onde se localizavam os instrumentos cirúrgicos. Não os inofensivos. Os pontiagudos.
— Não! — Ela gritou, entre a vidraça rachada e a ponta da faca que quase penetrava o tecido de suas roupas.
De tanto insistir, o assassino esfaqueou o vidro duas vezes e a deixou para cair junto dos milhares de cacos de vidro. Não viu o tempo passar porquanto estava inconsciente, ao lado da mesa cirúrgica. Quando acordou, pôs-se em pé rapidamente e olhou para cima. Não havia sinal do mascarado; os únicos ruídos eram de saltos sobre os cacos de vidro.
Depois, veio o som de passos.
Ela correu para selar as portas, no momento exato em que o assassino irradia pela entrada. Ele correu para a direita, onde havia uma janela de vidro, assim também como ela o fez. Ele, empunhado a uma faca de açougueiro. Ela, uma furadeira cirúrgica que acabara de encontrar no balcão.
Havia algo na maneira como se encaravam, em silêncio, que se fazia irresistível. Era a primeira vez, em longos dez anos, que a Amanda via aquela máscara. Ela não assistia mais Scream com os amigos. Não olhava para a arte de capa dos livros de Chloe Field e Aaron Estwood quando passava por uma livraria. Não lia jornais, revistas, nem pesquisava o próprio nome na internet. Até então, aquela máscara só existia em seu mundo dos sonhos. Agora, tendente a ser uma sórdida realidade.
Por que ele não estava reagindo? Poderia quebrar a vidraça como havia feito com a primeira e investir em um ataque. Amanda começou a se perguntar se era realmente isso que ele queria, ou se estava ali somente para faze-la lembrar. Ela nunca o esqueceria, e ele havia se certificado disso.
Antes de pensar em um plano de fuga, ele fugiu tão rápido quanto havia chegado. Parecia uma sombra, um vulto burlado e desconexo numa silhueta humana.

Amanda recuou em passos curtos e deslizou ao chão, escorada no armário. Estava acabado. Por enquanto.

Sobre a pronúncia:
Alguns nomes americanos podem ser um verdadeiro desafio na hora de pronunciarmos. Mesmo que seja um livro, esses nomes ecoam nos nossos pensamentos enquanto lemos (Se vocês forem iguais a mim, haha). Separei essas dicas para facilitar o entendimento dos leitores, caso precisem.

Amanda Rush: Se pronuncia "Amênda Ruosh"
Aaron Estwood: Se pronuncia "Éron Est-uud"
Matty Hilliard: Se pronuncia "Méri Ríliard"
Dylan Hardesty: Se pronuncia "Dylan Rárdesti"
Dodger Abrahams: Se pronuncia "Dójer Abrarrâns"
Adia Thompson: Se pronuncia "Êiria Tompsom"
Lila Blackwell: Se pronuncia "Laila Bleque-uel"
Mason Harding: Se pronuncia "Meizon Rárin"
Axel Dommett: Se pronuncia "Équicel Dômet"
Grant Riviere: "Se pronuncia "Gruent Ruiviér

Capítulo 4: Detenção (Dia 28/09)
Matty e seus colegas são atacados pelo assassino durante o período de detenção estudantil, na biblioteca do Roosevelt High. Será o capítulo mais longo de toda a saga. 21 páginas! Gostaram da perseguição dessa semana?
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