Especial

Foto:

Livro | A Punhalada 4 - Capítulo 2: Bem-Vindo ao Fim das Eras


Não se esqueça de dar play na música para ter uma experiência completa.

      O informado de aterrissagem ressoou duas vezes para todos os passageiros antes do avião fazer a manobra. Logo estavam em terra firme, seguindo as instruções dos comissários de bordo para a retirada. Não obstante às oito horas mal dormidas, Grant havia decidido que aquela era a melhor parte da viagem.
— Finalmente — Disse ele, livrando-se do cinto de segurança e abrindo o bagageiro no teto.
Elena, sua noiva, tinha uma perspectiva um pouco mais teatral.
— E chegamos vivos — Ironizou.
— Até agora. Nada impede o avião de explodir enquanto tentamos sair.
— É mais seguro voltar para Londres de uber — Ela apanhou sua bolsa de mão. Grant parecia estar se esforçando mais do que deveria para carregar as bagagens, se havia entendido aquela careta. — Quer ajuda?
— Sim, por favor.
— Isso depende. Você é um pró-feminista?
Grant não precisou pensar duas vezes. De fato, parecia até um pouco surpreso por ter que responder uma pergunta tão óbvia.
— Você sabe que sim.
— Então é o seu dia de sorte. Claro, se o avião não explodir antes de você se dar bem — Ela apanhou uma mala pelas alças e sorriu o mesmo sorriso que guardava inteiramente para ele. Não era à toa que Grant a tinha como a melhor coisa que já lhe aconteceu.
Elena era tão diferente dele quanto de suas outras namoradas da faculdade. Ele, de cabelos loiros, pele clara, lábios rosados e olhos azuis. Ela, de pele negra, lábios carnudos e olhos castanhos intimidadores. Naquele dia em especial, usava um rabo de cavalo de armação única e um vestido social branco combinado a um casaco preto; cada detalhe cuidadosamente revisado para causar uma boa impressão aos olhos de Megan Estwood, o mais próximo de mãe e confidente que tinha seu noivo.
Megan havia mandado um motorista e uma limusine especialmente para recebe-los no setor de desembarque. O homem de chapéu branco e sobretudo escuro segurava uma placa com os nomes Grant Riviere e Elena Mills de cabeça para baixo. Já era de se esperar que os funcionários de Megan fossem tão excêntricos quanto ela mostrava ser.
Os jovens entraram na limusine e esperaram pacientemente o trajeto até o Rancho Estwood. Talvez não tão pacientemente, uma vez que Elena tenha se entregado a ansiedade. Mãos suando, pés inquietos e suspiros nervosos.
Grant não precisava mais ficar atento aos seus sinais para saber como se sentia.
— Hey, vai dar tudo certo — Ele garantiu.
— Eu sei, é só... Ela é Megan Estwood, apresentadora do Talk That Talk. Se eu disser algo errado tenho certeza que ela jogará uma taça de vinho francês no meu rosto como faz com seus convidados.
Seu noivo quase gargalhou.
— Ela não é assim. É extravagante, claro, mas sabe o quanto você é importante para mim. Não pense em Megan Estwood como uma mãe que você precisa conquistar, pense nela como uma tia legal, do tipo que oferece camisinha aos sobrinhos e faz eles beberem álcool pela primeira vez. Não que isso tenha acontecido, é claro. Mas meio que aconteceu.
Agora era Elena quem estava com um sorriso no rosto.
— Eu espero ouvir a versão dela; algo me diz que há detalhes constrangedores que você não diria a sua noiva.
— Talvez isso seja verdade — Ele admitiu. — Megan sempre cuidou de mim, desde a morte do meu pai. Ele casaria com a irmã dela se não fossem todos aqueles assassinatos, e eu teria uma vida completamente diferente, onde não conheceria você. É assim que eu sei que tudo deveria ser do jeito que é.
Ela o beijou carinhosamente, como uma recompensa por suas palavras de conforto.
— Você é adorável.
— E eu acho que chegamos — Grant olhou através da janela.
O Rancho Estwood erguia-se logo à frente deles, elegante e imensurável. Após os portões viam-se jardins floridos, quedas d’água artificiais e um reservatório apenas para os animais de estimação. A mansão principal estava logo à frente, se seguissem em linha reta, e a casa de hóspedes a oeste, próxima as piscinas. Elena definitivamente nunca tinha visto nada igual.
— É incrível — Ela sussurrou da janela da limusine, não exatamente para ele.
— Você precisa conhecer a sauna, sem-tetos poderiam acampar ali dentro.
— Você é muito, muito, muito rico, senhor.
— Obrigado. Isso soa tão romântico.
Então deixaram o veículo com a permissão da governanta, que indicou o caminho das piscinas para que encontrassem a anfitriã.
— Por favor, não faça contato visual com as gêmeas — Foi o primeiro pedido de Grant.
O segundo veio logo depois, quando passaram as árvores e encontraram a festinha particular da família Estwood. Viram pessoas com fantasias gigantes de desenhos animados, crianças nadando em boias coloridas, três mesas com aperitivos, e por fim, a anfitriã, tomando sol numa cadeira de praia enquanto saboreava uma taça de suco de maçã. Usava um maiô verde, extraordinariamente em forma, um chapéu rosado e um par de óculos escuros. Megan Estwood, a primeira e única.
E o segundo pedido de Grant:
 — Estão dando uma festa. Sorria.
Também lhe era uma surpresa.
— Ai meu deus, Grant! — E aí estava a recepção inconfundível que provava já ter sido notado. Megan pulou da cadeira e correu para o abraço apertado que tanto lhe fez falta. — Desculpe pela confusão, achei que você só chegaria à tarde. E você está gostoso! Ele não está gostoso? — Era uma retórica que Elena não precisava responder.
— Perdão por chegar assim de surpresa. O voo foi adiantado, algo sobre evitar o horário comercial dos Illuminati.
— Nada disso, Sarah Michelle e Eliza só estão comemorando o cancelamento da série da Katherine Heigl. Sempre que tem baixa na audiência elas chamam os amiguinhos para a piscina e assistem A Noiva de Chucky com legenda em Tailandês.
Elena demorou alguns instantes para processar a informação. Sarah Michelle e Eliza... Megan estava falando das próprias filhas? Faria mais sentido se fossem Anna e Elsa. Talvez coloquem a ideia em prática na próxima geração.
— E como elas estão? — Grant perguntou.
Mas Eliza apareceu de surpresa antes que a mãe respondesse, com uma mão segurando sua boneca Annabelle e a outra guiando Dona Mercedes, a empregada mau humorada da mansão. Diferente da irmã, que insistia em manter os cachos loiros, Eliza fazia duas tranças enormes de seus cabelos castanhos, cada uma jogada por cima de um ombro.
— Mamãe, podemos brincar de exorcizar a Dona Mercedes e passar o espírito para a minha boneca? — A garotinha perguntou, inocentemente.
Megan abaixou-se, com as mãos nos joelhos, para que ficassem da mesma altura.
— É claro, meu amor. Mas não a exorcize em espanhol, porque isso é racista. Agora vá.
E assim ela fez, só não antes de Mercedes lançar um olhar fulminante a sua patroa por ter aprovado mais uma brincadeira tenebrosa com seu envolvimento. Mais uma segunda-feira extraordinariamente comum no rancho dos Estwood.
— Crianças — Megan ironizou, apontando o polegar para trás. E logo então virou-se para dar seu último aviso. — E não cheguem perto da minha estátua da Medusa! — Como resposta, ouviu apenas grunhidos espanhóis de Dona Mercedes, que soavam como maldições ou orações fervorosas para deuses desconhecidos. — Isso é engraçado. — Virou novamente para Grant e sua noiva. — Vocês sabiam que colombianos não falam inglês?
— Essa também me pegou de surpresa — Elena sorriu sem graça, mesmo que fosse o melhor que podia.
— Oh, me desculpe, não me apresentei. Sou Megan — Aproximou-se para um beijo cortês na bochecha.
— Oi, eu sou Elena.
— Sim, a que trabalha com massagem.
— Fisioterapia.
— Sério? Você parece não ter problemas para andar.
Elena gaguejou qualquer coisa que não valia a pena dizer. No olhar de Grant, viu todos os motivos para não tentar explicar.
— Enfim — Megan continuou. — A casa de hóspedes ainda não está totalmente pronta, mas podemos dar um jeito nisso em alguns minutos.
— Não se preocupe, não precisamos de tanto luxo. Podemos nos arrumar do jeito que está.
— Já faz dois anos, Grant. Vai ter que me deixar mima-lo em algum momento. E você, Elena, sinta-se à vontade. A casa também é sua pelo tempo que ficar.
— Obrigada — A jovem sorriu tímida.
— Então, ponham uma roupa de banho. Seria bom ter adultos por perto caso eu tenha intoxicação solar.
Grant e Elena trocaram outro olhar, lembrando em sintonia que não poderiam aceitar o convite.
— Na verdade, estávamos pensando em encontrar alguns amigos — Disse Grant.
— E ainda temos uma visita marcada para escolher o vestido. Vera Wang — Elena concluiu.
Megan não precisava ouvir mais nada.
— Tudo bem, vocês têm a minha bênção. Compromissos de casamento são tão sagrados quanto ir à igreja aos domingos.
— Isso deveria ser legislado — Elena sorriu. Sentia-se estranhamente à vontade para falar, como se agora tivesse algo em comum com a tia legal de quem tanto ouvia.
— Você só é noiva uma vez na vida se pretende ficar com o mesmo homem. Essa é a lei.
— Então vamos obedecer — Grant também estava de acordo.
Despediram-se então, com um beijo em cada bochecha e outro abraço apertado. Megan voltou para a piscina, e Grant e Elena partiram por onde chegaram. Tinham chegado à primeira curva quando Elena acionou o modo paranoia.
— Não acha melhor ficarmos em um hotel? — Ela perguntou. — Não quero sentir que estou incomodando.
Grant olhou rapidamente para a piscina, onde Megan discutia com o homem fantasiado do dinossauro Barney.
— Megan te adorou. Acredite, você saberia se ela te odiasse.
— E Aaron?
— Aaron é o melhor. Se algo desse errado, você seria a primeira pessoa a ter algo contra o Senhor Estwood.
— Você está certo — Ela admitiu. — Vamos apenas seguir com o plano.
E assim eles seguiram, deixando para trás Megan, Mickey Mouse e Barney em uma briga de tabefes. Um segundo depois, os três caíram na piscina e ouviu-se apenas o grito estrondoso de Megan e das crianças que brincavam ao redor.
— Eu vou incendiar a sua Disneylândia! — Ela voltou a superfície, cuspindo a água para fora.
Era apenas a ira momentânea falando. Ou não.

φ

— Agora o que todos querem saber — Disse Amelia Grey, a não tão simpática apresentadora de cabelos ruivos. — Teremos uma sequência?
Aaron havia pensado na resposta muitas vezes antes.
— Neste momento é um tanto improvável, eu não sei. Dizem que sequencias nunca superam o original. Devo continuar uma história para servir de comparação à todas as outras ou tentar provar que os críticos estão errados?
— Após três best-sellers do New York Times, todos focados nos tão famosos massacres do fantasma mascarado, acha que está na hora de se reinventar?
— Acredito que não há muito o que eu possa fazer — Ele cruzou as pernas no sofá azul. — Cada livro contou a história de assassinos diferentes, de épocas diferentes. Não é ficção, isso realmente aconteceu. Não pode haver um quarto livro se não houver uma história para contar. E eu prefiro que não haja história para contar e ser obrigado a escrever sobre culinária.
A plateia fez-se em risadas diante das câmeras.
— Sabemos que você e Megan engataram um romance durante os assassinatos — Amelia discorreu. — Isso mudou algo entre vocês?
— Eu acredito que tudo acontece por uma razão. Éramos as vítimas principais de alguns dos serial killers mais famosos da América, e esta é uma conexão involuntária que acabamos estabelecendo com qualquer pessoa que também tenha vivido aquele horror. Com Megan era diferente porque ela nunca foi um certo alguém com quem vivi uma tragédia e poderia me identificar. Talvez tudo o que aconteceu tenha nos aproximado mais um pouco, mas eu gosto de pensar que estaríamos aqui, agora, comemorando dez anos de casados, independente de termos sido vítimas.
— Dez anos de casados? Isso é grande coisa. — Amelia repetiu cheia de desdém, do seu tom de voz ao batom vermelho. — Bom, talvez não para as solteiras de Chicago. Elas devem estar muito decepcionadas em saber que Aaron Estwood não está mais no mercado.
Aaron sorriu cortês.
— Na verdade, minha esposa tem um recado para as solteiras de Chicago — Ficou de pé e levantou a camiseta, mostrando o abdome definido e o cinto preto ostentando uma foto de sua esposa e a frase “Propriedade de Megan Estwood”.
A plateia e os telespectadores foram aos gritos. Até mesmo Amelia, que parecia um tanto constrangida, esboçou uma risada discreta em sua pose de magnata intocável.
— Isso diz bastante sobre o casamento de vocês — Sussurrou entre o alarido.
Assim Aaron voltou a sua poltrona.
— Ela é feminista, preciso apoia-la.
— Tudo bem, uma última pergunta — Hesitou para fazer um breve suspense. — Aonde está Amanda Rush?
— Amanda é uma aventureira. Você pensa que ser uma das cirurgiãs mais bem sucedidas do país a faria criar raízes, mas é exatamente o contrário. Da última vez que nos falamos, ela estava na Austrália tirando selfies com cangurus. Agora pode estar em qualquer lugar... a não ser que esteja na plateia — Aaron ergueu sua cabeça para procurar. — Ela não está disfarçada na plateia, não é? Eu odeio não prever esse tipo de surpresa.
Mais um coro de risadas ecoou pelo estúdio. Aaron amava ouvi-los. Talvez fosse o que mais amava ouvir.
— Não, ela não está aqui. Mas não é por falta de convites. Quem sabe na próxima não terei vocês no meu sofá, os dois sobreviventes mais queridos da América.
— Tudo bem, pedirei permissão à Megan.
E depois do último gracejo, a plateia ficou de pé para a despedida.
— Aaron Estwood, senhoras e senhores — Amelia finalizou, entre gritos e aplausos.
Aaron agradeceu o carinho fazendo um cumprimento japonês e seguiu diretamente para os bastidores. Bianca, sua assistente superdotada, o esperava logo atrás das cortinas pretas.
— Você foi maravilhoso — Disse ela, entregando-lhe uma garrafa d’água e a agenda de recados.
— Obrigado. Adorei seu novo corte de cabelo — Aaron tomou um gole. Junto dela, caminhou pelos corredores tentando lembrar aonde ficava seu camarim.
— Sua entrevista para o The View sairá hoje à noite e é indispensável ir à celebração de lançamento amanhã. Os investidores dos hotéis Strauss também ligaram informando que a reunião foi adiantada para depois de amanhã, às dezoito horas.
— Droga, eles sabem que eu detesto essa pressa toda.
— E Grant ligou dizendo que já está na cidade. Vocês têm o jantar hoje à noite.
Pelo menos uma boa notícia. Ou duas, pois ali em frente estava seu camarim.
— Ótimo, ligarei para Grant agora mesmo — Assim que tomou o celular em mãos, viu uma nova mensagem de texto prioritária no nome de Derek Murphy, seu informante da delegacia de homicídios de Chicago. — Pensando melhor, você pode ligar no meu lugar? Preciso fazer uma coisa.
Bianca assentiu em concordância.
— Tudo bem, mas será que eu poderia usar o banheiro do seu camarim? — Ela perguntou. — Não tenho permissão para usar o banheiro feminino daqui.
— Vamos combinar uma coisa. Vá ao banheiro feminino outra vez, e se eles não deixarem você entrar por ser transexual, diga que vamos processar até a avó do faxineiro para nos certificar de que essa emissora não terá futuro algum. Você pode citar minha amizade de longa data com o Tenente Schwarz se for preciso.
Bianca esboçou um sorriso tímido, como se não acreditasse que poderia se impor. Mesmo assim, agradeceu pelas palavras de incentivo e ergueu a cabeça, convencida a tentar.
Aaron apenas trancou a porta pelo lado de dentro e digitou a senha para liberar a mensagem prioritária.
“Kyle foi assassinado ontem à noite. Precisamos conversar” — Ele leu. Amanda lhe veio à cabeça imediatamente.
A verdade é que Aaron nunca se preocupou em ser honesto diante das câmeras. Com Amelia, falava apenas o que o público queria ouvir. Sozinho, fazia bom uso de tudo aquilo que julgavam como intelectual demais para uma celebridade. Sabia exatamente onde Amanda estava, sabia exatamente com quem estava. E sabia como iria reagir assim que contasse a notícia.
Bem, precisava contar.
“Kyle foi assassinado ontem à noite. Fique exatamente onde está, ligarei assim que puder”. — Escreveu na mensagem antes de sair.
Ele não sabia, mas Amanda já estava em perigo. Este, pelo menos, fazia jus a sua própria vontade.
Todos os anos, durante o verão, dezenas de alpinistas se aventuravam na perigosa subida de Valle de Cochamó, no Chile. Dependendo de cada meta, cada aventureiro é capaz de chegar até mil metros de altura, quando a floresta se torna apenas uma mancha verde ao longe. Amanda e Jessica estavam quase lá, equipada com cadeiras, capacetes, cordas, estribos, freios, mochilas, polias e ascensores extras.
— Como está a vista aí embaixo? — Jessica perguntou, dois metros acima.
— Você está falando da sua bunda ou da altura? — Amanda enganchou em outra pedra.
— Dos dois. Só faltam alguns metros para sermos as mulheres mais radicais deste hemisfério.
— É, eu tomei esse título depois do segundo serial killer.
Jessica gargalhou. Era engraçado – e excitante – a maneira que os sons ecoavam a sua volta.
— Pena que não trouxemos uma coroa de mentira da loja, nossas selfies no topo seriam bem originais.
Ouvindo o barulho de pedras, Amanda olhou para baixo. Sentiu-se, por um breve momento, escorrendo alguns centímetros através da corda. Estava alto demais. Bem mais alto do que gostaria.
— O que foi? — Jessica perguntou lá de cima.
— Nada — Amanda respondeu.
E então o nada se transformou numa queda repentina quando um lance de pedras de apoio se desprendeu, no momento em que tentava engatar o próximo passo. Um ascensor arrebatou, obrigando Amanda a usar as pernas para prevenir a queda. Jessica conseguiu frear nas cordas de cima, mas a outra caiu outros cinco metros até conseguir acionar o freio emergencial.
— Okay — Ela sussurrou, deitada no ar, com a respiração ofegante. — Agora estou me divertindo.
Jessica não sabia dizer o quanto estava aliviada.
Chegaram ao topo minutos depois, sãs e salvas. Amanda caminhou até a beirada, para ver mais de perto, e Jessica livrou-se de seu equipamento, revelando o amontoado loiro de seus cabelos. A vista do pôr-do-sol e o efeito de conquista provaram ser exatamente o que precisavam, como se o mundo estivesse aos seus pés e agora sentissem uma pequena prova de Deus.
— Estamos aqui — Sussurrou Amanda, os cabelos negros acompanhando a ventania, os olhos fascinados pelo horizonte.
— Estamos aqui, vagabundas! — Jessica gritou.
Amanda sorriu feliz; ou algo mais para uma risada que um simples sorriso. Pegou o celular, num movimento quase instintivo, e lá estava a mensagem de Aaron trazendo más notícias.
Matty, foi a primeira coisa em que pensou. E também a única.
φ

Os vizinhos ouviram os gritos novamente. Alguns saíram de casa, para entender o que estava acontecendo. Outros permaneceram no mesmo lugar, fingindo que nada havia de errado e não havia com o que se preocupar. A família Hilliard, mais uma vez, travava uma batalha entre os seus.
Eles viram Matty deixando a casa enraivecido e batendo a porta furiosamente. Viram-no gritar um último insulto, entrar no carro e depois partir em alta velocidade. Sua mãe, a obstinada Genevive Hilliard, havia chegado tarde demais para detê-lo.
Matty dirigiu sem rumo pelas ruas de Seattle, um pouco para cada lado que não levava a lugar algum. Tão nervoso que não podia chorar; era este o significado de família naquela noite. Não podia voltar para casa, pois eles estariam lá. Não podia ir para casa de Dylan ou Dodger, porque seus pais ligariam para avisar onde estava. E ele não queria pensar tanto, nem se preocupar com o futuro acadêmico que agora tinha perdido. Deixou-se, então, guiar por seus instintos, o que o acabou levando à propriedade do Roosevelt High School.
Havia uma árvore, atrás do campo de lacrosse, com uma latinha de conservados pregada em seu tronco. Tente acertar a bola dentro da lata — Seu treinador ordenava sempre que não se sentia à vontade para ensina-los. Matty já estava com a porra da bola e a porra do bastão em mãos.
Ele arremessou uma, duas, três, quatro, cinco, dez, quinze, vinte vezes. Nenhuma delas fora certeira. Ele gritou de frustração e olhou para o céu. Também deixou-se chorar o pouco que podia. Estava obcecado. Tudo iria mal enquanto o tempo o deixasse preso naquela maldita cidade.
Fuck! — Gritou bem alto. O preço de sua ira momentânea foi o farol direito do precioso carro de seu pai, que explodiu num chute certeiro.
Pegou a bola novamente e preparou outro arremesso. No momento exato, ouviu alguém chamar seu nome e virou-se para olhar. Dylan estava lá, assim como Dodger. O garoto jogou-se no chão, achando que a virada repentina faria com que Matty arremessasse a bola em sua direção.
— Uow, vai com calma! — Ele pediu.
— Levanta daí, não seja ridículo— Dodger lhe disse, depois virou para Matty. — E você. Estávamos preocupados.
Matty não precisava ir muito longe para entender como o haviam encontrado. Genevive ligou avisando sobre a fuga, é óbvio, e os outros só precisaram ativar seus superpoderes de melhores amigos para descobrir onde um Matty Hilliard de coração partido iria numa noite como aquela.
Não fazia mal. Na verdade, Matty estava um tanto aliviado por tê-los ali.
Eles deixaram o campo logo então e entraram no vestiário masculino para incentivar o banho de restauração que o amigo precisava. Matty não fez qualquer cerimônia; entrou debaixo do chuveiro com roupa e tudo enquanto os amigos esperavam próximo aos armários. Dez minutos depois, sentiu que o peso do mundo já não estava mais sob seus ombros. Talvez a água quente também fosse um superpoder a se considerar.
De roupas molhadas, sentou-se no banco de madeira entre os dois amigos para que enfim conversassem.
— Eu soube quando cheguei em casa — Matty lhes disse. — Ela e meu pai, o clima estava péssimo, eu sabia que algo tinha acontecido. Perguntei se estava tudo bem e ela apenas chorou. Se não fosse meu pai, talvez nem tivesse me dito.
— Ela pegou tudo? — Dodger perguntou.
— Sim. Para todos os efeitos, minha poupança da faculdade agora é conhecida como o Genevive’s Hair Saloon. Ela nem esperou para saber se eu havia ganhado a bolsa de esportes ou não. E adivinha? Eu não ganhei, porque há atletas mais qualificados como Mason Harding e Ty Curtis.
Ela suspirou, decepcionada. Não com Matty, e nem tanto com sua mãe. Havia algo muito mais problemático num sistema de ensino que obrigava jovens a gastar uma fortuna para ter uma formação acadêmica que em uma mãe desesperada para encontrar um propósito na sua vida. Se não fosse este mesmo sistema de ensino, Genevive teria se formado e não precisaria escolher entre seu futuro e o de Matty.
— Isso é inacreditável. Sei que é sua mãe, mas está ficando cansativo demais vê-la escolher a si mesma no seu lugar.
— Ela é assim — Matty deu um ar de risos depressivo. — Sempre acha que fazer o melhor para ela é fazer o melhor para a família inteira. O pior é que tanto ela quanto meu pai já se convenceram disso.
Se não houvesse como reverter a situação, Dylan só tinha uma única dúvida:
— Isso significa que você não vai fazer faculdade?
— Se eu não conseguir oitenta e cinco mil dólares nos próximos dois anos, acho que não. Talvez eu possa trabalhar no fast food e ganhar algumas gorjetas.
Dylan acabou considerando mentalmente esta possibilidade.
— Ainda estamos falando sobre o futuro do Matty? Porque está soando um pouco como o meu.
— Você não vai trabalhar no Mc Donalds — Matty garantiu. — Você é um gênio do computador e o mestre de todas as coisas proibidas que não são suficientemente asquerosas para a deep web. Mas podemos experimentar o uniforme, só por precaução.
Dodger com certeza não deixaria isso acontecer. Aquela conversa havia deixado Dodger mais inquieta do que gostaria e a fome não ajudava em nada. Era o bastante para uma noite só na vida dos três mosqueteiros.
— Quer saber? Foda-se. Você não precisa decidir os próximos dois anos da sua vida agora. Vamos apenas para minha casa fazer uma maratona de filmes e tomar bastante sorvete. Eu serviria brownies de maconha se minha mãe estivesse na cidade e meu estoque não fosse limitadíssimo.
Matty e Dylan trocaram um olhar curioso.
— Maratona de terror? — Matty sugeriu, e Dodger pareceu levar algum tempo para se dar por vencida.
— Beleza, isso é com vocês. Só não quero nada sobre espíritos malignos. Eu sempre tive medo de “Invocação do Mal 5”.
— Por que? Sequenciafobia?
— Basicamente, James-Wan-fobia.
— Combinado — Mesmo depois do aviso, Matty esboçou um lindo sorriso em resposta. — Eu quero um pouco de slasher, e vocês?
A noite terminaria bem se dependesse dos outros dois mosqueteiros. A garota de cabelos ruivos, olhos castanhos, óculos de grau e roupa quadriculada, como uma donzela da era moderna. E o jovem hiperativo e cabeça oca de cabelo espetado, que sempre usava roupas duas vezes maiores que o seu número.

É, estava em boas mãos.

φ

Curiosidades:
Clique na imagem para ampliar.
- Os nomes das filhas gêmeas de Megan e Aaron são em homenagem as duas caçadoras de Buffy: The Vampire Slayer. Sarah Michelle Gellar, que fazia a própria Buffy, e Eliza Dushku, que fazia a anti-heroína Faith.
- O dreamcast de Dylan no livro seria o próprio Dylan O'brien, de Teen Wolf.
- Amanda e Jessica, a nova personagem, se relacionam como um casal, não apenas como amigas. É importante dizer agora para que não fique confuso posteriormente.
- Bianca Hennig é a primeira personagem transsexual de toda a franquia. Representatividade, né, mores?
- O poster ao lado é em homenagem ao primeiro livro, lançado em 2011. Não encontrei muitas fotos dos atores para utilizar no estilo do poster, então tomei a liberdade de fazer algo diferentezinho, colocando as fotos deles em preto e branco para disfarçar a disfunção de cores que elas traziam originalmente.

Nina Dobrev como Amanda Rush. Gaspard Ulliel como Aaron Estwood. Julianna Guill como Megan Bower. Cody Christian como Brandon Rush. Sophie Turner como Trish Peterson (a mocinha que morre no capítulo 3 quando todos pensavam que era protagonista). E Matt Lanter como Daniel Clark (o namorado de Amanda que é assassinado no capítulo 6)

Novamente, este elenco é apenas representativo para enriquecer o conteúdo dos posteres.

Capítulo 3: Não Me Esqueça (Dia 21/07)
Matty é vítima dos valentões do colégio no primeiro treino como membro oficial do time de lacrosse. Após o horário de funcionamento, Amanda invade o necrotério de um hospital de Chicago para ter certeza se Kyle está realmente morto. 
Comentário(s)
5 Comentário(s)

5 comentários:

  1. Primeiro a gente grita "Aaron, que homão da porra!", depois a gente comenta.

    Morri que senti o cheiro de couro entre Amanda e Jessica de longe, e no fim rolou mesmo hauahua. Li os dois capítulos juntos, por isso tô comentando só nesse, mas sua escrita continua incrível, João chará hahaha. Quero muito ver o reencontro da Amanda com o Matty AAAAA. E espero que no próximo role sangue, porque é isso que a gente quer! ~aqueles. E coitado da população do futuro aguentar 5 Invocações do Mal, isso é mais tortura do que o Ghostface!!

    PS: Quantos caps terá esse quarto livro, João?

    PS 2: Não demora com o ícone The Double Me, eu imploro!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. E aí Joãaaaaaao

      No próximo capítulo o assassino vai aparecer pela primeira vez desde as mortes iniciais. Não posso dizer se é no núcleo dos sobreviventes ou no núcleo dos jovens, mas também são só 7 dias de espera, logo logo vocês vão estar lendo xD

      A piada com Invocação do Mal 5 foi tipo master easter egg hahaha. Não ia dar muitos detalhes sobre essas produções, mas acabou saindo, quem sabe pra fazer uma boa referência a evolução no terror, já que estamos lidando com uma história que acontece em 2027.

      Agora, respondendo sua pergunta, o livro terá 13 Capítulos ao todo, sendo o último previsto para 30 de Novembro esse ano. E será o último capítulo ever, já que a saga termina por aqui D:

      Excluir
  2. Acho desnecessário colocar a Amanda (que já se relacionou com 2 homens na saga) como lésbica, era melhor ter criado outro casal de lésbica ou de gays, pra não mudar a personagem, sobre a parte do Aaron ameaçar a processar a emissora por causa de um banheiro, achei bem forçado, a punhalada ta virando história de sjw ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amanda não é lésbica, é bissexual, e isso está claro desde o segundo volume, quando, numa festa, ela beija homens e mulheres (Capítulo 4). Ter se relacionado com homens anteriormente não prova que ela seja 100% hétero, pois a sexualidade pode ser desenvolvida de forma aberta e não há tempo certo para esta descoberta.

      Mesmo assim, é estranho ver você dizer que está tudo bem criar novos personagens gays/lésbicas para não mudar a orientação dos personagens que você já conhecia, mas no capítulo 4 você disse que achou "uma merda" Matty não se importar com gêneros na hora de se relacionar amorosamente com alguém. Um personagem novo, cuja origem já deixa claro sua orientação sexual, e mesmo assim você não aprovou. Acho que você tem um sério problema com a diversidade e isso não está relacionado ao caminho que os personagens da saga acabam seguindo, e sim a sua própria índole.

      Aaron ameaçou processar os estúdios de TV pois há uma lei bem específica que permite a entrada de mulheres transsexuais em banheiros femininos normalmente. Nada mais justo, na minha opinião, por isso não hesitei em implementar no livro.

      A Punhalada 4 não é um livro de Social Justice Warrior por tratar com naturalidade temas polêmicos, que, na verdade, são apenas um pequeno detalhe perto do que a história quer mostrar. LGBT's estão por toda parte, não é meu trabalho ignora-los, e sim me aproximar o quanto eu puder da realidade.

      Abraços.

      Excluir
    2. Não fui eu que comentei sobre o Matty, eu ainda não cheguei no capítulo 4

      Excluir